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+ literatura
O escritor norte-americano Louis Begley comenta
romances de Dostoiévski, Franz Kafka e Thomas Bernhard
A necessidade dos anti-heróis
Louis Begley
especial para "Salon"
Uma idéia herética se enraizou nas
mentes de muitos leitores: eles acreditam que o personagem principal de
um romance deveria ser uma pessoa
boa. Caso o autor, ao contrário, dote seu
personagem principal de alguns dos defeitos de caráter e vícios que observou
em si mesmo e nos outros, esperam que
ele forneça, antes que chegue a última
página do livro, uma experiência redentora que transforme esse protagonista
em uma pessoa melhor. E ai do autor que
não cumprir a regra. O veredicto nesse
caso seria de que não se pode gostar de
seu romance porque não é agradável.
Gentil leitor, essa regra não existe.
Grandes romances não têm nenhuma
obrigação de ser agradáveis ou oferecer
heróis e heroínas dignos de afeto. Tão logo suas ocupações o permitam, por favor, corram a ler as três obras-primas
mencionadas abaixo.
Notas do Subterrâneo
Esse romance de Dostoiévski começa com uma
frase famosa: "Sou um homem doente...
sou um homem mau". O nome do personagem que nos fala jamais é revelado,
mas sua situação é definida com abrupta
eficiência. Ele tem 40 anos, um parente
distante deixou-lhe 6.000 rublos como
herança, o que basta para que subsista
em algum lugar na periferia de São Petersburgo daquela maneira esquálida
que os romances russos do século 19 nos
ensinaram ser "de rigueur" para a "intelligentsia" empobrecida, e as únicas coisas que o separam da miséria crassa das
massas são um diploma e o conhecimento rudimentar da língua francesa.
As "Notas do Subterrâneo" (Ed. Bertrand Brasil) estão sendo escritas, nos
conta ele, não para o público, já que ninguém as quereria ler, mas porque "no
papel, de alguma forma isso parecerá
mais solene".
O que se segue é uma tirada brilhante
-sarcástica e desesperada- contra a
ilusão utilitária de que o homem, se ensinado a pensar corretamente, lutará pelo
bem comum. O homem do subterrâneo
sabe que isso é besteira; os homens
amam o sofrimento tanto quanto, ou até
mais, amam o bem-estar. Ele ilustra sua
tese com uma confissão, lembranças dos
acontecimentos que transcorreram
-ele tem "centenas dessas memórias"- quando era um funcionário menor em um departamento do governo.
O núcleo da história é sua visita a um
bordel depois de um jantar regado a bebida com seus colegas de escola, todos
mais ricos e bem-sucedidos. Ele acorda
ao lado de uma mulher e, à toa, para humilhá-la e se engrandecer, ele a catequiza
sobre a ignomínia e os perigos da vida de
uma prostituta. Ou talvez o faça por
compaixão genuína. Já que ele é um "paradoxalista", constantemente apanhado
entre posições contraditórias, não se pode dizer ao certo. Ambas as posições são
provavelmente verdadeiras.
Antes de sair, dá seu endereço à moça.
E, a partir daí, passa a viver apavorado
com a idéia de que ela o leve a sério. A garota pode mesmo decidir visitá-lo em
seu tugúrio, vê-lo em seu roupão imundo e remendado e perceber a extensão de
sua nulidade.
Quando a moça aparece, ele histericamente conta a ela a "verdade" sobre seus
motivos. Quando uma vez mais acorda
nos braços dela, a necessidade de humilhá-la retorna. Ele a força a aceitar dinheiro. Em um momento, ele a vê partir,
deixando seu dinheiro sobre a mesa. Ele
corre para a rua, atrás dela, mas não a encontra. De fato, nunca mais a vê.
Refletindo sobre o ato de escrever a história desse encontro, ele começa a encarar a atividade como "punição corretiva", não literatura. Reconhece que "um
romance precisa de um herói, e aqui estão reunidas, propositadamente, todas
as qualidades de um anti-herói..."
A grandeza de "Notas do Subterrâneo"
jaz precisamente nesse ponto: a capacidade de Dostoiévski, por meio do vigor
intelectual e humor de seu estilo, de tornar completamente convincentes as
contraditórias características de seu anti-herói, conquistando nossa adesão à causa de um homem que não hesita em se
ver como um monstro.
O Processo
Kafka via "Notas do Subterrâneo" como a verdadeira fonte de toda a literatura moderna e uma influência
determinante em seu trabalho. Por sua
vez, "O Processo" (Ed. Companhia das
Letras), o melhor dos três romances inacabados de Kafka, talvez tenha deixado
marcas mais profundas na consciência
do século 20 do que qualquer outro romance. Devido ao seu impacto, o adjetivo "kafkiano" é usado em toda parte:
não só entre os leitores da obra de Kafka,
mas também entre as pessoas que aprenderam, por osmose, a usar o termo como
abreviação para os meios arcanos e incontestáveis pelos quais o Estado moderno nos desumaniza.
"O Processo" é a história de Joseph K.,
funcionário de um banco sobre quem alguém deve estar espalhando mentiras,
porque, uma certa manhã, sem que tenha feito nada de errado, ele é detido por
dois homens. Eles não lhe oferecem explicação nenhuma, e no entanto K. aceita
sua autoridade. Depois, como um homem perdido em meio a um nevoeiro
denso, ele tenta descobrir como funciona o tribunal no qual seu caso será julgado -um tribunal onipotente e onipresente, que talvez nem sequer seja parte
de um Estado constituído.
K. também é um anti-herói, e seu caráter é uma mistura de covardia servil, astúcia, oportunismo e um ocasional otimismo rebelde. Como o homem do subterrâneo, ele é assustadoramente solitário, e essa solidão é aliviada penas por encontros sexuais passageiros. No final, K.
é executado pelos enviados do tribunal,
homens que parecem velhos atores de
décima categoria. Em um terreno baldio,
um deles enterra a faca no coração de K.
""Como um cão!", disse ele; era como se a
vergonha precisasse sobreviver a ele."
Árvores Abatidas
O austríaco Thomas Bernhard é com certeza o maior romancista a ter escrito em alemão na segunda metade do século 20. Sua admiração especial por Dostoiévski e Kafka não
é acidental; ele compartilha com eles a
incapacidade de ver qualquer sentimento ou circunstância senão como um conjunto de contradições, qualquer uma das
quais deveria, mas na verdade não o faz,
excluir sua antítese.
"Árvores Abatidas" (Ed. Rocco) é a
história de um "jantar artístico" em Viena, ao qual o narrador comparece e do
qual não sai, se bem que não haja nada
que ele deteste mais do que jantares artísticos. Ele aceitou o convite porque lhe
foi feito de forma abrupta por um casal
de pessoas que 30 anos antes haviam sido seus melhores amigos e protetores, e a
quem ele agora despreza. Mais cedo, naquele dia, os anfitriões, ele e uma mulher
que também está convidada para o jantar foram ao funeral de outra mulher,
uma amiga e provavelmente amante do
narrador no passado, que se enforcara.
O convidado de honra, ator no Burgtheater de Viena, está atrasado. O jantar
só é servido depois da meia-noite, e, enquanto eles esperam a refeição, que se arrasta em meio à peroração do ator, o narrador, em um monólogo vitriólico e maravilhosamente engraçado, disseca a vida da mulher morta, dos convidados e
anfitriões e, evidentemente, a sua vida.
Os narradores de Bernhard odeiam de
maneira prodigiosa, e no entanto os
amamos. São brilhantes demais para que
nos comportemos de outra forma.
Louis Begley é escritor, autor de, entre outros, "O
Homem Que Se Atrasava" e "Infância de Mentira" (Companhia das Letras).
Tradução de Clara Allain.
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