São Paulo, domingo, 28 de maio de 2000


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+ teatro
O diretor Thomas Ostermeier fala sobre sua ascensão ao comando do Berliner Schaubühne, uma das mais importantes companhias da Alemanha, e discute o retorno da casa às suas origens engajadas
Gerações substituídas

Uta Atzpodien
especial para a Folha

Em Taormina, na Sicília (Itália), a União do Teatro Europeu outorgou o prêmio Novos Horizontes Teatrais deste ano a Thomas Ostermeier, um jovem diretor teatral alemão que, com olhar crítico, vira pelo avesso seu meio social. Desde outubro do ano passado, Thomas, 32, dirige o lendário Berliner Schaubühne com uma equipe formada pela coreógrafa Sasha Walz e pelos dramaturgos Jens Hillje e Jochen Sandig.
A instituição foi fundada em 1962 na ex-Berlim Ocidental, como um teatro privado com projetos socialmente engajados. Com um grupo de jovens teatrólogos, o diretor Peter Stein implementou a partir de 1970 novas formas teatrais, processos de trabalho democráticos e coletivos, tentando confrontar a sociedade com peças e montagens política e esteticamente provocativas.
No "estilo Schaubühne" foram debatidos a tragédia grega, autores clássicos e contemporâneos como Botho Strauss e Peter Handke. Diretores como Klaus Michael Grüber, Luc Bondy e Robert Wilson trabalharam com Peter Stein no Schaubühne, que, em 1981, se mudou para o edifício construído nos anos 20 na Lehniner-Platz. Quem dirigia o teatro desde 1992 era Andrea Breth.
Ao assumir a direção artística do Schaubühne am Lehniner Platz no final de 1999, Thomas Ostermeier, entrevistado pela Folha a seguir, remonta conscientemente à tradição de crítica social da casa e prenuncia para muitos -após anos de uma arte quase sempre voltada para o próprio umbigo, alheia à sociedade- o advento de uma nova geração teatral alemã.

Nos últimos anos você trabalhou no pequeno palco do Teatro Alemão, a Barraca. O que significa assumir agora a direção do Schaubühne com a coreógrafa Sasha Walz e os dramaturgos Jens Hillje e Jochen Sandig?

Só posso descrever retrospectivamente, porque já estamos no meio do trabalho. Ocorreu a possibilidade de montar um novo conjunto numa casa qualitativamente estimada e muito bem dotada em termos orçamentários, com expedientes técnicos fantásticos e excelentes oficinas. No outono, fechamos 66 novos contratos artísticos. Não tenho notícia, na história do teatro alemão, de que tenha havido uma troca de geração tão súbita numa casa como essa.

No folheto com a programação desta temporada, vocês falam do teatro como um lugar de tomada de consciência, de uma repolitização, e também do teatro como tarefa. Como você vê essa "tarefa"?

Depois do surto ocasionado pela politização de 68, houve na maioria dos teatros alemães uma geração de diretores -os velhos mestres de hoje- que, por meio de uma reinterpretação dos clássicos, conseguiu fazer algo como teatro contemporâneo. Tomando o desvio dos clássicos, eles falavam mais de si mesmos -com o truque de que o público burguês acreditava ir a uma apresentação clássica, que cultivava a herança cultural clássica. Essas pessoas eram então simplesmente confrontadas com o patrimônio intelectual de uma geração jovem, revolucionária. Tal evolução se inverteu no final dos anos 80, quando as montagens passaram a se mover num círculo cada vez mais fechado, no qual importava mais a restrição às próprias referências ou, quando muito, se relacionar com outras montagens.
Nessa torre de marfim, deixou de existir o vínculo com o que acontecia lá fora. Era quase um monólogo interior. Houve algumas exceções. Castorf, por exemplo, alcançou certa politização na ex-Alemanha Oriental (RDA), um caminho análogo ao pessoal da ex-Alemanha Ocidental (RFA) de então. Por intermédio dos clássicos ele contou algo sobre a situação na RDA, mas então foi forçado a se vender bem rápido ao oeste como destruidor de peças. Hoje isso só funciona com base num cinismo triste -triste por ser tão cínico, mas também porque não vê alternativa nenhuma. Nessa situação, sentimos como uma tarefa falar sobre hoje, sobre os conflitos que existem lá fora. É nosso dever dar vida tanto aos conflitos pessoais quanto aos conflitos sociais. Afirma-se que o teatro institucional alemão tem estruturas esclerosadas, hierárquicas, falam sempre de crise.

Vocês pretendem montar estruturas organizacionais diversas no Schaubühne?
Como elas seriam?

Fala-se da crise no teatro desde que o teatro existe. Quase sempre se alude a uma crise de conteúdo, a uma crise estética, e em segundo plano a uma crise das instituições. Depois de andar um pouquinho por outros países, percebe-se que o sistema teatral alemão oferece pelo menos a possibilidade de que, em muitos lugares da Alemanha, conjuntos sejam formados e atores sejam contratados. O nível da dramaturgia e da estética cenográfica também é relativamente alto na Alemanha, quando se compara, por exemplo, com os países anglo-saxões. Daí eu não ver, em termos internacionais, a própria instituição no centro da crise. Muitos teatrólogos estrangeiros nos invejam pelo nosso sistema teatral, pelas dotações com que aqui na Alemanha se faz uma única peça nos grandes teatros estatais, coisa que noutros lugares tem de bastar para toda a temporada.
Depois, o problema institucional aqui no Schaubühne é um pouquinho diferente, já que se trata de um teatro privado, e todo o lucro que temos num ano podemos transferir para o seguinte. Esse não é o caso de outros teatros estatais, nos quais nem se pensa mais que se trabalha para o lucro, já que não se pode reinvestir os lucros no trabalho, senão repassá-los diretamente ao Estado. Pelo fato de o Schaubühne ser administrado empresarialmente, o teatro sempre teve um grande interesse em não deixar surgir um elefante branco administrativo: nas áreas técnica e administrativa, trata-se de uma empresa extremamente enxuta, que tem de trabalhar com mais racionalidade que um teatro estatal. De outro lado, esse teatro sempre teve uma grande tradição democrática, de modo que o nosso projeto de organização coletiva e participação de atores nas decisões dos trabalhos teve boa acolhida.

No que consiste, em termos concretos, esse modelo democrático?

De um lado, semanalmente há encontros de conjuntos teatrais nos quais são sempre discutidos, de forma alternada, questões de conteúdo ou política interna, ou são lidas e discutidas peças. Esse é na verdade nosso principal pilar, pois se trata de um fórum para debates sobre conteúdo no teatro. O segundo pilar são nossos colóquios, repartidos ao longo da semana, nos quais os representantes dos atores participam das reuniões de direção, dando palpites sobre todo o tipo de questão cenográfica e técnica.
Tentamos garantir a máxima transparência possível nas questões que dizem respeito à casa e, com essa transparência, alcançar uma responsabilidade ainda maior. O objetivo de que as pessoas tenham mais consciência -esse é também um interesse bem egoísta de minha parte-, que ganhem consciência de como um projeto é posto em prática, do porquê se monta isso e não aquilo.

Sobre a estrutura organizacional, e também sobre a pretensão estética de discutir a tarefa criticamente com a sociedade, já devem ter ouvido alguém da velha guarda dizer: "Deixem estar, daqui a algum tempo passa o entusiasmo e a coisa não funciona mais". O que tem a dizer sobre as experiências dessa geração que os precedeu?

É fácil acreditar que seja assim. Mas, quando se entra em contato com as pessoas que realmente estão com a mão na massa, então... Presidi certa vez uma mesa-redonda na Academia das Artes, estavam presentes Palitzsch como representante do modelo de Frankfurt, Schitthelm como representante do modelo de Berlim e também Karlheinz Braun, da Editora dos Autores, que dirige a editora segundo princípios comunitários. Todos eles eram da opinião de que esse, e somente esse, é o jeito certo de fazer teatro. Os três descreveram que foi a época mais importante e artisticamente mais criativa de suas carreiras. Palitzsch disse até mesmo que as coisas ficaram ainda piores que nos tempos anteriores ao modelo frankfurtiano, o modelo municipal e estatal alemão regrediu ao período feudal e absolutista.
De um lado, nutrimos grande simpatia por aqueles que realmente se envolveram. De outro, tentamos também aprender com suas experiências e, portanto, não discutimos com o conjunto questões de ocupação, questões de engajamento e da extensão ou não dos contratos. Tais questões já foram debatidas em todos os outros modelos do passado, inclusive em Frankfurt e no Schaubühne.
Isso chegou ao ponto de os atores muito engajados terem de se pronunciar diante de todo o conjunto etc., o que costumava levar a conflitos pessoais de interesse. Por isso suprimimos esse ponto, é um modelo modificado, que, por meio de um estudo preciso, tenta evitar esses impasses. Trata-se de uma consequência lógica daquilo que vimos trabalhando faz tempo nas duas equipes, tanto na "Sophiensäle" como na Barraca, só que lá tais princípios não eram institucionalizados ou prescritos, eram tácitos.

No texto vocês falam de "dramaturgia aberta". A que se referem?

De um lado, organizamos conversas com especialistas, com gente como os sociólogos Richard Sennet ou Pierre Bourdieu. Fazemos isso para promover o encontro das pessoas ou compreender algo, e tais colóquios são públicos. Um discurso que, antes, costumava se dar atrás das portas fechadas da dramaturgia. E existe ainda o trabalho da pedagoga teatral Uta Plate, que trabalha muito em contato com o público. Ela promove workshops sobre as encenações para os espectadores, antes das encenações. Coisa de uma popularidade enorme. Se a apresentação começa às 20h, ela encena das 13h às 18h situações da peça, conta alguma coisa sobre o autor, explica outras sobre o conceito de direção. E isso, obviamente, também é oferecido para as escolas, o que entretanto é mais comum, já sendo prática de muitos teatros.
E existem também os grupos de atores que vivem em moradias comunitárias aqui em Berlim, que vêm aos nossos ensaios, ou aos ensaios de quem eu também vou, dar uma olhada no que estão fazendo. E existe o projeto nas escolas: um aluno serve como porta-voz do Schaubühne, contando o que nós fazemos e expondo numa vitrine nossos projetos. É uma tentativa de atingir um público jovem. E o último ponto da dramaturgia aberta é que tentamos estabelecer um contato direto com grupos não-profissionais da cidade. Um desses grupos era o pessoal do "Ex'n'play", com quem trabalhei durante "Personenkreis" (Círculo de Pessoas). É um grupo de ex-drogados que estiveram presentes aos meus ensaios abertos de "Personenkreis" e com o qual conversamos uma tarde inteira, eles compareceram a ensaios e explicaram diversas coisas. Também lemos peças em conjunto.

Seu primeiro trabalho no Schaubühne foi a montagem de "Personenkreis 3.1", um texto do autor sueco Lars Norén. O que lhe interessou nesse texto?

Foi a curiosa coincidência da evolução de Norén como dramaturgo no início dos anos 90. Com a queda do Muro, ele deixou de lado os dramas familiares e partiu em busca de um teatro sociológico, e nós, que saímos da Barraca, onde éramos conhecidos pelas peças sobre o cotidiano sórdido das famílias, buscamos o grande esboço social. O bonito foi também que a dramaturgia dessa peça, inclusive pela sua enorme extensão épica, representava um desafio, um desafio para saber se era possível narrar daquele jeito ou se era possível narrar o que se quisesse ou se era possível a tentativa de se assenhorear da realidade ou se a realidade era mesmo daquele jeito, indescritível, ou se era possível representar o caráter indescritível da realidade.

Você tem a pretensão de fazer teatro contemporâneo. O que significa isso?

No fundo, todo teatro é contemporâneo no momento em que é representado. Para mim, teatro contemporâneo é a tentativa de se colocar à altura dos problemas do tempo, dos conflitos da época, não simplificar as coisas e reagir à realidade modificada com os meios da estética e da forma. Um teatro que está sempre em busca.

Teatro como busca implica também dialogar com os mestres da profissão. Quais são seus mestres ou modelos no teatro?

Dialoguei muito com os velhos mestres, com a biomecânica de Meyerhold, de forma bem prática com Bogdanov, um discípulo de Meyerhold, dialoguei com bastante veemência com todo o modelo de Stanislavski, como fundamento da biomecânica de Meyerhold. Interessante é ver os dois sistemas como complementares, o que aliás eles próprios fizeram em sua fase posterior. Tive ainda um diálogo bem acirrado com Artaud. E, claro, volta e meia retorno a Brecht, Brecht é um dos meus principais guias. Sempre há vozes dizendo que Brecht são águas passadas. Os que não gostam de Brecht são todos uns tontos.

O que você tem em vista agora?
Quais são seus novos projetos?

Estou ensaiando a peça "Crave", de Sarah Kane; logo em seguida começo a nova peça de Marius von Meyenburg, "Parasitas", depois, logo em seguida também, Jon Fosse, um autor norueguês, e então dou uma longa pausa antes de "A Morte de Danton", de Büchner. E provavelmente -ainda não há nada certo- o "Marat/ Sade" de Peter Weiss.

Por muito tempo se disse que os novos autores teatrais estão em crise, que a qualidade deles era baixa. Já faz alguns anos que isso parece estar mudando. Qual é para vocês o papel desses jovens autores?

Para nós o autor é o centro das preocupações, pois não somos os donos da verdade, sempre temos dúvidas, perguntas a fazer. Daniel Danis vem do Canadá, franco-canadense, Jon Fosse vem da Noruega, Sarah Kane da Inglaterra, Marius von Meyenburg da Alemanha, Lars Norén da Suécia, Falk Richter e Roland Schimmelpfennig da Alemanha. São todos autores interessantes -não porque venham de tais ou quais países, mas porque escrevem peças boas.


Uta Atzpodien é crítica de teatro alemã.
Tradução de José Marcos Macedo.


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