São Paulo, domingo, 28 de maio de 2000


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O historiador critica a tese de que os portugueses teriam aderido aos costumes do Brasil Colônia e mostra como eles se mantiveram fiéis a seus hábitos alimentares e desprezaram produtos locais, como milho e mandioca
Nas fronteiras do paladar

por Evaldo Cabral de Mello

Reprodução
"Negra" (1641), óleo do pintor holandês Albert Eckhout



Não seria de esperar que, malgrado a capacidade lusitana de assimilação, o povoador abandonasse os produtos básicos do viver metropolitano


Malgrado a expansão territorial e a decorrente rustificação da existência, nosso cotidiano quinhentista (1532-1630) apegou-se aos modelos da vida material no reino tão porfiada quanto ao cabo inutilmente, a começar pelos hábitos alimentares. Pode-se comparar, aliás, o processo brasileiro com o que ocorria na América espanhola, onde, sugeriu Braudel, os "criollos" já se convertiam ao milho, à mandioca e a outros alimentos indígenas, devido, segundo pensava, à crise de meados do século 16, mas decerto também em razão do caráter continental da colonização espanhola comparativamente à ocupação talassocrática, como foi a portuguesa do primeiro século. Ainda no começo dos Seiscentos, François Pyrard observava que os colonos do Brasil destinavam o milho aos animais, ao contrário dos espanhóis das Índias de Castela, que já o misturavam ao pão. Ao oposto da noção segundo a qual o português teria aderido alacremente aos costumes da terra, provando destarte sua capacidade superior de adaptação ao mundo não-europeu, ele procurou manter-se fiel à tríade canônica do trigo, do vinho e do azeite até quando foi possível, isto é, pela altura da invasão holandesa, quando a aceitação de produtos nativos pela gente de prol se terá imposto, devido às dificuldades do suprimento de gêneros reinóis, embora no período de paz entre a resistência e a restauração eles fossem substituídos por víveres de procedência neerlandesa.

Lenta deslusitanização
Ao longo dos Quinhentos apenas se iniciou o longo processo de deslusitanização do paladar, derradeiro traço, segundo pretendia Eduardo Prado, a desnacionalizar-se no indivíduo. São bem conhecidas as resistências que oferecem as fronteiras alimentares, na esteira inclusive das conotações simbólicas de status e de especialização alimentar de classe e de grupo social, como indica o exemplo clássico da expansão da vinha na Europa transalpina da Alta Idade Média em consequência das necessidades do culto católico e da tendência do alto clero e da nobreza a preservar os padrões de consumo das classes superiores da Antiguidade tardia. Não seria, portanto, de esperar que, malgrado a apregoada capacidade lusitana de assimilação a culturas diferentes, o povoador quinhentista abandonasse da noite para o dia os produtos básicos e até os ancilares do viver metropolitano.
O citado François Pyrard, que visitou o Brasil em 1610, afirma que "a terra produz pouco e não avonda (i.é., abunda) para sustentar os portugueses; e por isso toda a sorte de víveres lhes vêm ou de Portugal ou das ilhas dos Açores e Canárias", inclusive carne de vaca e peixe salgado, donde a carestia da vida, que lhe parecia seis a oito vezes mais onerosa que na França. Não fosse o comércio do açúcar e do pau-brasil, os colonos não poderiam sobreviver na terra. Pela mesma época, Diogo de Campos Moreno constatava que "por mar e por terra (Olinda) tem abundante comércio de todas as coisas".
Já nos anos 60 do século 16, quando ainda não se fizera sentir a prosperidade açucareira, o padre Rui Pereira admirava-se de ser a capitania de Pernambuco "mui provida das coisas do reino", donde "continuamente se vende(rem) pão de trigo, vinho, azeite etc.". Destarte, em matérias de provisões, "quem tiver com que as compre, não há diferença do reino". Anchieta observava que "alguns ricos comem pão de farinha de trigo de Portugal, máxime em Pernambuco e Bahia, e de Portugal também lhes vêm vinho, azeite, vinagre, azeitonas, queijo, conserva e outras coisas de comer". Ainda ao tempo da guerra neerlandesa, as caravelas procedentes do reino, que eram apresadas pelos cruzeiros inimigos, continham invariavelmente o carregamento de trigo, vinho e azeite.
Como substituí-los rapidamente, à maneira do que teria desejado frei Vicente do Salvador, pelos seus equivalentes coloniais, estigmatizados que ainda se achavam a farinha de mandioca, a aguardente de cana e o azeite de dendê pela sua condição de alimentos de índios e africanos? Quando os holandeses conquistavam Olinda, surpreenderam-se de encontrar, nas casas abandonadas pela fuga precipitada dos moradores, "as mesas postas por toda a parte e bem providas com comidas e bebidas". Dado o saque à vila, os soldados da Companhia das Índias Ocidentais se haviam abundantemente provido de vinho, azeite, farinha de trigo, uvas e azeitonas. Quando, no interregno de paz do período nassoviano, restabeleceu-se o aprovisionamento em comestíveis europeus, a comunidade luso-brasileira regressou, malgrado as dificuldades financeiras, às suas preferências alimentares. Um relatório holandês refere-se ao consumo da população livre dos engenhos como consistindo de vinhos, azeite, manteiga, farinha de trigo, toucinho, queijos, presuntos, línguas, carne de fumeiro, bacalhau, peixes da Terra Nova, sardinhas, a que se acrescentava, única novidade do norte da Europa, a cerveja, tão estimada pelos batavos. Mesmo quando o reinício da guerra incentivou a aceitação de víveres da terra por parte dos colonos, o mercado brasileiro para o trigo, vinho e azeite continuou a ser substancial e lucrativo, tanto assim que, ao se criar em 1649 a Companhia Geral de Comércio do Brasil, El Rei teve de lhe conceder o monopólio do comércio de tais produtos, a que se acrescentou o bacalhau. Ademais, quando forem extintos os privilégios da Companhia, a Coroa terá de lutar com unhas e dentes para preservar esse mercado para os seus nacionais, diante das pretensões britânicas e neerlandesas de dominá-lo.

Alimentação européia
No decorrer do nosso primeiro século, o uso da farinha de mandioca nos núcleos litorâneos não foi tão generalizado quanto ocorreria depois nem constituiu o consumo do trigo uma novidade da ocupação holandesa, a qual, esquecida desde então, teria sido reimpingida no século 19 pelos ingleses, como julgou Gilberto Freyre. No tocante à Bahia colonial, Thales de Azevedo afirmou que, "por muita mandioca que aqui comesse", os portugueses "não abandonaram de modo algum o seu sistema de alimentação europeu, de base no trigo, nem o complexo indígena da mandioca teve uma vitória completa sobre aquele cereal". Ainda no século 17, tem-se a impressão de "ser o pão de trigo um artigo de consumo popular (...) e não exclusivamente "um luxo dos ricos'".
Deste aferro à farinha de trigo não há melhor exemplo do que o dos paulistas, reputados, devido à sua pobreza, por sua permeabilidade ao estilo de vida indígena. Após 60 anos de bugre e de brenha, tão logo as circunstâncias permitiram a cultura tritícola, ei-los que recaem no antigo hábito metropolitano do pão alvo, exportando o excedente para o resto da colônia.
A concepção simplista de uma adesão universal à farinha de mandioca por parte do povoador lusitano de 500 deriva de má leitura, muitas vezes descontextualizada, dos primeiros cronistas, ou então das afirmações demasiado enfáticas de Gândavo e de frei Vicente do Salvador. Os outros cronistas permitem, contudo, matizar, senão rever, tais generalizações, a primeira, da parte de autor que não esteve entre nós, escrevendo pelo que ouviu dizer; a segunda, avançada pelo primeiro advogado de uma autarquia que deveria habilitar o Brasil a bastar-se a si mesmo.

Era raro haver almoço ou jantar, por frugal que tenha sido, em que não se aluda ao consumo do vinho, inclusive no tocante ao passadio dos reinóis modestos, como aqueles artesãos de Olinda que surgem nas páginas da documentação inquisitorial fazendo seu repasto ortodoxamente europeu de pão, carne e vinho


Em Pernambuco e na Bahia, o colono também consumia pão de trigo. A farinha vinha já moída de Portugal, de vez não ser possível trazer o trigo ceifado que estragaria no decorrer da viagem, mesmo a farinha tendo o inconveniente de não se poder preservar além de certo tempo. Salvador já era, nos dias de Gabriel Soares de Souza, praça "sempre mui provida, e o mais do tempo o está, do pão que se faz das farinhas que levam do Reino a vender ordinariamente à Bahia". As posturas municipais regulavam em detalhe a fabricação e a venda do pão. Os "Diálogos das Grandezas" põe as coisas em pratos limpos. Ao descrever os mantimentos nativos, Brandônio enumera, em primeiro lugar, a mandioca, que é o mais consumido "comparativamente" ao arroz e ao milho, que o são muito pouco, o arroz sendo reputado "quase por fruta", e o milho, reservado à alimentação dos índios e africanos e para sustento dos cavalos e aves. Noutro passo, ele registra que "não poucos (colonos) usam também de pão, que mandam amassar e cozer em suas casas, feito de farinha que compram do Reino ou mandam buscar às casas das padeiras, porque há muitas que vivem desse ofício". Seguia-se assim a prática metropolitana dos fornos para consumo doméstico e dos fornos coletivos do pão comercializado, estes a cargo de mulheres, como se verificava no Porto e em Lisboa, onde a profissão era especialidade feminina.

A preferência pelo trigo
Quando os holandeses ocuparam a Paraíba, constataram que os ricos e os remediados só consumiam farinha de trigo, vinda do reino em barricas, ou de São Paulo, em cestos e surrões, ao passo que a farinha de mandioca era o pão dos pobres. Só quando as estreitezas da guerra encareceram o abastecimento, é que lemos em Moreau que os luso-brasileiros "raramente comem pão da Europa", embora continuassem a fazer dele "tanta questão" que o promoveram a iguaria refinada, cobrindo-o com açúcar. Depoimento reforçado por Nieuhof, que também já registra a generalização da farinha de mandioca à população portuguesa e aos próprios europeus do norte, a ponto de os soldados da Companhia das Índias Ocidentais preferirem receber suas rações em pão de mandioca em vez do de trigo. Tratava-se, porém, de um caso de força maior, pois ninguém punha em dúvida a superioridade da farinha de trigo. Por inércia cultural ou por exibição de status, os colonos ricos ou simplesmente acomodados não pareciam partilhar da opinião segundo a qual, em vista dos danos acarretados ao trigo pelo transporte marítimo à longa distância, a mandioca era-lhe superior, exceto a farinha de "bom trigo", isto é, o artigo de qualidade consumido no local da sua produção, o que excluía, portanto, a Bahia e Pernambuco, mas não, a partir do segundo decênio dos Seiscentos, o planalto paulista. Essa teria sido também a opinião dos três primeiros governadores gerais, que, diz-nos Gabriel Soares de Souza, "não comiam pão de trigo, por se não acharem bem com ele, e assim o fazem outras muitas pessoas". Ao oposto dos portugueses, os neerlandeses pretenderão que o europeu não se dava bem com a mandioca, que, usada por tempo prolongado, prejudicava o estômago e os nervos, corrompendo o sangue. Por sua vez, os indígenas repudiavam a farinha de trigo por indigesta, exigindo, quando no serviço militar da Companhia das Índias Ocidentais, que lhes fosse fornecida a de mandioca. Esse dualismo do trigo e da mandioca era a reprodução, no Brasil dos Quinhentos, de uma das estruturas do cotidiano alimentar da Europa, onde, na dependência das variações econômicas e regionais, a procura dos cereais bifurcava-se no "pão branco", feito exclusivamente de trigo, e no "pão preto", à base de centeio ou cevada. Especialização igualmente viva em Portugal, onde se comia, de um lado, o pão de trigo, em especial nas cidades e entre as classes abastadas; de outro, o pão de milho, centeio e cevada, e também os fabricados com a mistura de vários grãos, meados (trigo e milho), terçados (trigo, milho e centeio) ou quartados (trigo, milho, centeio e cevada), que alimentavam no interior do país a grande maioria da população.

Farinha de guerra
Na Península Ibérica, ademais, o próprio trigo conhecia uma especialização econômica de consumo. Ao passo que as pessoas abastadas comiam o trigo local, o trigo a que tinham acesso as classes desprivilegiadas era o trigo importado do norte da Europa, que se deteriorava facilmente no decurso da viagem e por isso mesmo era mais barato. Para enfrentar as conjunturas de penúria no aprovisionamento de uma e outra qualidade de pão, em Portugal como no resto da Europa, a massa da população rural contava também com o aporte de legumes secos, favas, lentilhas, castanhas, papel que entre nós será desempenhado por uma das modalidades da farinha de mandioca, a chamada "farinha de guerra", de que se faziam provisões tendo em vista os períodos de escassez ou para alimentação dos criados e escravos e de que também se abasteciam as embarcações nas viagens de regresso.
No tocante ao reino, o déficit alimentar de grãos, de que ele cronicamente padecera, será remediado, a partir precisamente dos Quinhentos, pela adoção, principalmente no Minho, do milho americano.
Por conseguinte, o que ocorreu na Bahia e em Pernambuco foi que os cereais de segunda no reino viram-se simplesmente substituídos pela farinha de mandioca. Mesmo quando a gente de prol recorreu a ela, fê-lo sobretudo sob a forma de bijus, estimados por mais saborosos e de mais fácil digestão. Ora, o biju não era criação indígena, mas uma das muitas invenções da arte culinária das mulheres portuguesas, na sua inclinação a arremedar manjares lusitanos com produtos nativos. No caso dos bijus, tratava-se de utilizar a farinha de mandioca à maneira do que se fazia no Reino com a farinha de trigo na confecção de filhós mouriscas. Bijus espessos e torrados, que duravam mais de ano sem se deteriorarem, eram igualmente usados no aprovisionamento dos navios de torna-viagem.
A tapioca constituía outra forma de consumo de farinha de mandioca pela "gente de primor". "Grossas como filhós de polme e moles", eram, contudo, menos apreciadas que os bijus, pois "não são de tão boa digestão nem tão sadias". Ademais, e ao contrário dos bijus, eram deglutidas quentes e banhadas no leite e, misturadas com açúcar branco, resultavam deliciosas. A carimã era especialmente ingerida como pirão, feitos também de caldo de peixe ou carne, com açúcar, arroz e água de flor de laranja -pirão, aliás, inicialmente designado por marmelada de mandioca.
Da carimã, as mulheres dos colonos também faziam "bolos amassados com leite e gemas de ovos", além dos mais variados belhós, como eram chamados no reino os bolos de abóbora com farinha de trigo e açúcar, fritados na manteiga ou no azeite, que Gabriel Soares pretendia serem mais gostosos de que seu congênere metropolitano. A carimã era também utilizada na confecção das "frutas doces". Crua, dava por fim "bela goma para engomar mantéus".
Mesmo quem, como no caso dos jesuítas, havia substituído o trigo pela mandioca, só usando a farinha nobre para o fabrico de hóstias, não dispensava os outros gêneros da metrópole, como o vinho e o azeite, para não falar do vinagre, das azeitonas, dos queijos e de outras coisas que deviam vir de Portugal. Era raro haver almoço ou jantar, por frugal que tenha sido, em que não se aluda ao consumo do vinho, inclusive no tocante ao passadio dos reinóis modestos, como aqueles artesãos de Olinda que surgem nas páginas da documentação inquisitorial fazendo seu repasto ortodoxamente europeu de pão, carne e vinho.
A despeito da quantidade de vinhas cultivadas na terra e de em São Paulo fabricarem a bebida, o Brasil estava sempre bem abastecido do produto do reino. Do Algarve, chegavam-lhe, ademais do vinho de Alvor, passas e figos. Importava-se até mesmo queijo de ovelha, embora no Rio Grande do Norte se fizessem queijos e requeijões à maneira de Lisboa. Tampouco a alimentação dos soldados, inclusive em lugares remotos como o mesmo Rio Grande, se havia desviado da dieta lusitana, de vez que os militares recebiam regularmente rações de vinho, carne, peixe -até pelo menos os começos dos Seiscentos, quando o fornecimento de víveres foi comutado por quantia em dinheiro, embora a farinha continuasse a ser proporcionada pelo governo em trigo ou em mandioca, segundo as possibilidades.

O vinho favorito
O vinho consumido pelos colonos quinhentistas foi, sobretudo de início, o vinho das Canárias e o dos Açores, de que costumavam se abastecer as embarcações no trajeto entre Portugal e o Brasil. Mas em começos dos Seiscentos, quando a concorrência do nosso açúcar fez-se sentir duramente sobre a economia da Madeira, esta reagiu mediante o incremento da sua produção de vinho para o mercado brasileiro, que se tornou o principal, mercê de que o artigo madeirense não só suportava, bem melhor que o do reino, os percalços das viagens, dos micróbios e do calor tropical, como até enriquecia-se com a mudança de clima, o que, no século 19, explicará a preferência do apreciador inglês do Madeira pelo produto que não fosse importado diretamente da ilha, mas após uma passagem pelo Brasil ou pelo Caribe. Ao longo dos Quinhentos, contudo, o gênero ainda não era a malvasia que, sob a designação de "Madeira wine", ficará conhecida na Europa a partir dos Setecentos; era apenas o vinho de mesa dos madeirenses da época. Contudo, em nossas mesas do primeiro século, não se eliminou o vinho das Canárias, que continuou o principalmente consumido, ao menos até o segundo decênio dos Seiscentos. Nos anos 80 dos Quinhentos, o consumo pernambucano de vinho já atraíra a atenção do padre Cardim, dando azo a importações entre 50 mil e 80 mil cruzados anuais. Conquistada Olinda pelos neerlandeses, estes encontraram armazenadas 500 pipas de vinho das Canárias, com que a soldadesca se embriagou. E, nos ataques ao interior, eles também toparam com vinho estocado em trapiches e em passos. O volume desse comércio parecia tão considerável que, quando, uma vez expirada a trégua entre a Espanha e os Países Baixos, a Câmara de Olinda viu-se obrigada a lançar mão de novo imposto para custear a defesa da capitania, criou-se uma taxação sobre o consumo de vinho, que, nos finais da guerra holandesa, contribuía com 12 mil cruzados anuais ou 7% da receita da capitania. O exemplo será seguido pela Câmara de Salvador e, em 1631, o tributo se verá aplicado em toda a América portuguesa. Na Bahia de meados de Seiscentos, a importação de vinho rendia anualmente 80 mil cruzados. Em Salvador, aliás, o produto era obrigatoriamente vendido com o pão, prática contra a qual nada puderam as posturas municipais, em nome dos direitos dos consumidores. Na realidade, o consumo de vinho era muito mais substancial à luz do hábito peninsular da sangria, que terçava ou meava o vinho com água da fonte, costume mediterrâneo e peninsular que o clima tropical incentivava entre nós.

Colonos intransigentes
François Pyrard de Laval era categórico ao afirmar que o "vinho de cana-de-açúcar, que é barato (...), só serve aos escravos e naturais da terra", passando a impressão de que nesse particular a atitude dos colonos era bem mais intransigente que no tocante à farinha de mandioca. Do consumo excepcional da cachaça e de outras bebidas alcoólicas do Brasil pelos colonos quinhentistas, testemunham os "Diálogos das Grandezas" ao queixar-se de que eles não se aproveitaram da "quantidade grande de vinho" que se achava pelos matos, como a aguardente de cana, que "para o gentio da terra e escravos de Guiné é maravilhosa", ou como a bebida feita de mel de abelha dissolvido em água, ou ainda como o vinho da palma, usado na Cafraria, e também do que se podia fazer dos cocos, à maneira da Índia.
Reclamação idêntica fará, aliás, nosso autor a respeito do azeite, observando "a muita quantidade de azeites que se dão pelos campos sem cultura nenhuma", com o que "mui bem pudera escusar o que vem do reino". E, contudo, os moradores persistiam em importarem vinho e azeite do reino. As crônicas tecem invariavelmente a loa das parreiras e das latadas brasileiras, cuja produção se destinava à alimentação, não à fabricação de vinho. O consumo de uvas era, aliás, importante, inclusive comercialmente, a ponto de as posturas municipais de Salvador fixarem-lhe as qualidades e os preços.


Evaldo Cabral de Mello é historiador e diplomata aposentado, autor de, entre outros, "Rubro Veio" e "O Negócio do Brasil - Portugal, os Países Baixos e o Nordeste, 1641-1669" (Topbooks). Ele escreve mensalmente na seção "Brasil 501 d.C.", da Folha.


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