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Noção de território nacional desponta hoje como único limite à ação cega do mercado
O chão contra o cifrão
MILTON SANTOS
especial para a Folha
O debate que atualmente comove o país é muito mais que uma
queda-de-braço entre governos
estaduais e governo federal. Também não pode se limitar a uma
discussão técnica para saber quem
deve arcar com o ônus das atuais
dificuldades financeiras da maioria dos 27 Estados e dos 5.507 municípios. O que está em jogo, na
Federação, é o próprio sistema de
relações em que se deveria fundar
uma coexistência harmoniosa das
atividades, das população e da administração.
A discussão sobre se há ou não
crise institucional não se pode
contentar com o argumento simplório de que as instituições, isto é,
o Legislativo, os tribunais e os governos, estão funcionando. O problema é a qualidade desse funcionamento. Se Estados e municípios
tornam-se incapazes de bem exercer o seu papel social e se a União,
engessada por compromissos externos, apenas reconhece esses
compromissos, o resultado substantivo é um empobrecimento
institucional, que pode conduzir à
ingovernabilidade e à deterioração
dos laços sociais.
Tudo isso tem que ver com a maneira como o país decidiu participar do processo de globalização.
Erigido em dado supremo das vidas econômica, social, cultural e
política do nosso tempo, o dinheiro funciona como motor e como
ator, impondo sua lei e invadindo
tudo. Ele se comporta como se fosse dotado de uma racionalidade
pura, exercendo-se, de modo inflexível, sobre as outras racionalidades.
A questão está nas outras formas
de vida: há, de um lado, a chamada
economia real, com todas as produções, todos os consumos, todo
o movimento das pessoas e das
mercadorias, e, de outro lado, a
prestação de serviços socialmente
devidos às populações e o próprio
exercício da cidadania. Estes últimos são dependentes do fiel cumprimento de suas obrigações, pelas diversas instâncias político-territoriais, a União, os Estados e os
municípios.
O problema é esse. Enquanto o
dinheiro, na sua forma pura, busca se impor como um dado absoluto, o território é sempre impuro
-porque misto-, o resultado de
todas as relações entre a existência
dos homens e as suas bases físicas
e sociais. Levando-se em conta o
processo histórico, o território
não pode ser considerado uma tábula rasa, uma tela neutra, um espelho, porque é indissociavelmente integrado a todas as pessoas,
empresas, instituições que o habitam, e assim dinamizado é, por
sua vez, tornado atuante.
As soluções às possíveis derrapagens do funcionamento do financeiro são buscadas no interior do
próprio sistema, para substituir
uma lógica conjuntural por outra
lógica conjuntural, considerada
mais perfeita do que a precedente
e legitimada por um discurso repetitivo e ruidoso. No mundo
atual, o despotismo do dinheiro
está ligado a uma lógica auto-referida e auto-explicativa, uma espécie de cachorro dando voltas e
mordendo o rabo, razão pela qual
busca remédio aos seus próprios
tropeços mediante novas construções matemáticas. Sem dúvida, a
ortodoxia do sistema financeiro
casa-se bem com os setores da
economia igualmente tributários
de lógicas quantitativas, que potencializam a sua inflexibilidade.
Mas a própria economia abriga setores que estranham esses rigores
e envolvem a parcela maior da vida social e a prática existencial da
maioria das pessoas. Por isso,
quando tais lógicas são impostas a
todas as situações, agudizam heterogeneidades e assimetrias e provocam fraturas e fragmentações.
Quando o subsistema financeiro
se apresenta como se fosse o sistema econômico e social todo inteiro, revela a sua cegueira quanto ao
resto da sociedade e desestrutura,
ao mesmo tempo, os demais subsistemas. É assim que, ruptura
após ruptura, brutalidade após
brutalidade, a uma crise sobrevém
outra, sempre mais aguda.
O dinheiro em estado puro dá as
costas à realidade do ambiente em
que se instala. Ele somente se
preocupa com "outros dinheiros", cada pedaço das finanças
buscando se harmonizar com outro pedaço -câmbio, juros, taxa
de inflação, a caterva dos déficits e
outros símbolos contábeis-, mas
não com os demais setores da vida
social. Mas estes têm como base a
existência real das pessoas sobre
territórios reais e não apenas uma
representação estatística e simbólica da vida, como nos comunicados do Ministério da Fazenda e do
Banco Central.
É por tudo isso que, hoje, seja
qual for a escala, o território constitui o melhor revelador de situações, não apenas conjunturais,
mas estruturais e de crise, mostrando, como no caso brasileiro,
melhor que outra instância social,
a dinâmica e a profundidade da
tempestade dentro da qual navegamos.
O território é onde vivem, trabalham, sofrem e sonham todos os
brasileiros. Ele é, também, o repositório final de todas as ações e de
todas as relações, o lugar geográfico comum dos poucos que sempre
lucram e dos muitos perdedores
renitentes, para quem o dinheiro
globalizado -aqui denominado
"real"- já não é um sonho, mas
um pesadelo.
O território acaba sendo um limite à ação cega da finança, inclusive porque as suas crises e tremores facilitam uma tomada de consciência dos problemas nacionais,
regionais e locais, sobretudo
quando o discurso do dinheiro,
brutal e reiterado, deixa de ser eficaz e, oferecendo-se como caricatura, torna-se cínico. Fica evidente
que a relação belicosa entre o dinheiro e o território revoluciona
relações estabelecidas, altera equilíbrios recentes ou pacientemente
adquiridos, sepulta valores, amplia o desemprego e afeta o orçamento das famílias e dos municípios e Estados, desorganizando,
profundamente, o cotidiano das
pessoas e das instituições locais.
A briga entre o chão e o cifrão,
da qual está resultando uma sociedade fragmentada e uma Federação ingovernável, não pode ser resolvida como se o dinheiro em estado puro fosse o único pressuposto da vida nacional. Urge encontrar um caminho que nos leve
a uma outra Federação, um recomeço a ser buscado com altivez cívica, humildade intelectual e sabedoria política e cujo ponto de partida seja o bem-estar da população
e a sobrevivência da Nação.
Milton Santos é geógrafo e professor emérito
da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e autor de "O Espaço do Cidadão" (Ed. Studio Nobel).
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