|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
AUTORES
A força de George Eliot
HAROLD BLOOM
especial para a Folha
Foi Freud, em nosso tempo,
quem nos ensinou de novo o que
os pré-socráticos já ensinavam:
"o "ethos' é o "daimon'�", caráter é destino. Uma geração antes
de Freud, George Eliot (1819-1880)
ensinava a mesma triste verdade
aos seus contemporâneos. Se caráter é destino, então não existem
acidentes. O caráter, presumivelmente, é algo de menos volátil do
que a personalidade; e nossa tendência seria não levar a sério quem
dissesse que personalidade é destino.
Não haveria falta de candidatos a
grande personalidade entre os
maiores romancistas: Balzac,
Tolstói, Dickens, Henry James, até
o enigmático Conrad. Mas o
exemplo máximo de caráter moral, por consenso, é George Eliot.
Ela preserva uma autoridade espiritual única, bem definida pelo crítico inglês Walter Allen: "George
Eliot é a melhor romancista do
mundo nalguns aspectos, coisas
que ficam no âmbito de sua interpretação moral da vida. Limitada
como era, certamente não se pode
dizer que fosse uma visão estreita;
nem Eliot jamais esqueceu das dificuldades implicadas na vida moral e da complexidade necessária
para reconstrui-la num romance".
Seu talento insólito, quase sem
igual -a despeito de seu lugar numa tradição do protestantismo
deslocado para a literatura, que
inclui a "Clarissa" de Samuel Richardson (no século 18) e a poesia
de Wordsworth (no início do
19)- é dar forma dramática às
suas interpretações, de um modo
tal, que são abolidas as fronteiras
entre o prazer estético e a renúncia
moral. Tanto a heroína Clarissa
Harlowe, de Richardson, quanto
Wordsworth, em seus melhores
poemas, partilham uma fórmula
de compensação: a experiência da
perda pode ser transformada em
ganho da imaginação. Mas a imaginação de Eliot, apesar de seus
antecedentes wordsworthianos e
dos muitos modos como Clarissa é
a precursora autêntica de Dorothea Brooke em "Middlemarch"
(editado no Brasil pela Record), é
severa demais para aceitar essa
fórmula compensatória. A beleza
da renúncia na ficção de Eliot não
vem de uma transformação da
perda, mas de uma outra força,
que não depende absolutamente
de ganhos ou trocas.
Eliot nos confronta com o enigma do que se poderia chamar o
Sublime Moral. Ela se integra à
companhia austera de profetas
prosadores do século 19: Carlyle,
Ruskin, Newman e Arnold na Inglaterra; Emerson nos Estados
Unidos; Schopenhauer, Nietzsche,
Kierkegaard e finalmente Freud na
Europa. Mas nenhum desses escreveu romances, embora, à sua
maneira, não deixassem de ser
contadores de histórias. As afinidades mais profundas de Eliot
passam bem longe de Dickens,
Thackeray e Trollope, e no entanto a forma de seus escritos nos
obriga a lê-la como se lê os três.
Isto cria certas dificuldades, já
que ela não era nenhuma grande
estilista e estava mais imersa na
tradição filosófica do que literária.
Sua frequente falta de jeito, evidenciada nos comentários parentéticos e hesitações da narrativa,
não tem, contudo, a menor importância.
Ninguém lamenta, também, a
sua falta total de senso de humor.
Até Wordsworth pode ser involuntariamente cômico (o que inspirou paródias maravilhosas de
Lewis Carroll e Edward Lear), mas
nunca encontrei uma paródia
bem-sucedida de George Eliot e
não acredito que seja possível. Não
seria prudente fazer piada com
nossa necessidade incurável, não
só de decidir sobre o que é uma
ação moralmente correta, mas de
agir de acordo, contra as demandas do prazer e do que tomamos
por interesse próprio. Assim como
Freud, Eliot é
forçosamente
uma pensadora moral, traçando em detalhe nosso
mal-estar na
cultura e verificando sem remorso os pesos
e medidas da
guerra civil da
psique.
As feministas, hoje, parecem levemente desconfortáveis com
Eliot. Descrevem como derrotistas
certas passagens, como a seguinte,
extraída de uma carta de 1867: "O
que quero dizer é que, como um
fato da mera evolução zoológica, a
mulher me parece ter ficado com a
parte pior da vida. Mas é por esse
motivo mesmo que eu argumentaria, mais uma vez, que na evolução
moral nós chegamos a "uma arte
que conserta a natureza' -uma
arte que é "a natureza em si'. É
função do amor, no sentido mais
amplo, mitigar a dureza dessas fatalidades".
A "resignação sublime da mulher", de que ela fala na mesma
carta, não é exatamente um ideal
popular hoje em dia, mas Eliot
nunca fala do sublime de maneira
leviana e nunca sem consciência
das perdas humanas em jogo. A
dureza de ser mulher, segundo ela,
há de permanecer, não importa
até que ponto se possa minimizá-la por uma reforma social. Sua
alusão à shakespereana "arte que
conserta a natureza" ("Conto de
Inverno", 4.4.95) é uma releitura
sutil de Shakespeare, na esperança
de uma evolução moral do amor.
O sentimento predominante
nessa carta é de lamento, mas está
longe de ser derrotista. Talvez ela
devesse ter falado de uma "sublimidade resignada" e não de "resignação sublime"; mas sua arte,
como sua vida, é uma resposta
mais que suficiente para qualquer
feminista empenhada em
diminuir o valor da autora
de "Middlemarch", que
divide com Jane Austen e
Emily Dickinson a distinção
de ser a escritora mais forte
da língua.
Para Henry James, "Middlemarch" era de uma vez só "um
dos romances mais fortes e um
dos romances mais fracos da literatura inglesa". A segunda parte
desse juízo representa evidentemente uma forma de defesa.
"Middlemarch" é um romance
tão bom, no mínimo, quanto
qualquer outro. E Dorothea Brooke assume uma posição crucial naquela grande sequência de heroínas da vontade protestante que inclui Clarissa Harlowe, Emma
Woodhouse ("Emma"), Hester
Prynne ("A Letra Escarlate"),
Isabel Archer ("Retrato de Uma
Senhora"), Ursula Brangwen
("Mulheres Apaixonadas") e
Clarissa Dalloway ("Mrs. Dalloway"), entre outras.
Relendo "Middlemarch", só fico triste quando sou forçado a me
deparar com Will Ladislaw, um
retrato idealizado de George
Henry Lewes, o amante nada indigno de George Eliot. Em tudo
mais, o romance só me desperta
espanto, se não por outros motivos, pelo fato de ser o único de todos os romances capaz de elevar a
reflexão moral ao nível da arte
mais elevada. Existe Nietzsche,
claro, mas seu "Zaratustra" não é
um romance -e, de qualquer
modo, é um desastre estético. Os
grandes moralistas, de Montaigne
a Emerson e Freud, não são escritores de ficção; mas George Eliot
fica nessa companhia.
Como é possível tamanha autoridade estética nas reflexões morais de Eliot, quando se pensa que
autoras contemporâneas nossas,
como Doris Lessing ou até mesmo
Iris Murdoch, não chegam a tanto? Pode-se dar duas respostas,
talvez independentes uma da outra. A primeira é que Eliot não tem
rival, entre todos os romancistas,
no que diz respeito à força cognitiva; ela está para a ficção como
Emily Dickinson para a poesia ou
Shakespeare para o teatro.
Não é habitual avaliar escritores
literários em termos de capacidade intelectual; mas isto talvez seja
um dos pontos perenemente fracos da crítica literária. E a nossa
perplexidade continua. Walt
Whitman, em minha opinião, é
superior até a Emily Dickinson, na
poesia americana; mas, comparado a ela, é incapaz de pensar. Dickinson e George Eliot, como Blake, repensam por si mesmos tudo
o que há na Terra e no Céu, como
Shakespeare também parece ter
feito, acima de qualquer outro autor. Uma originalidade cognitiva
dessa ordem torna-se claramente
um valor estético, em combinação
com outros modos de domínio literário; mas está praticamente ausente em poetas maravilhosos como Whitman e Tennyson.
Sem nenhum vínculo com sua
força cognitiva, pode-se apontar a
outra vantagem estética e maciça
de Eliot como moralista: uma total
inexistência das intensidades danosas, do tipo errado de autoconsciência, no que tange à moral e à
moralização. Não há afetação alguma, nem qualquer hesitação nas
ruminações de Eliot sobre dilemas
morais. Ela sabe ser de uma vez só
intrincada e direta nesses assuntos,como na famosa conclusão de
"Middlemarch".
Ali se encontra uma frase como
essa, que é ao mesmo tempo um
mero truísmo e um momento profundo de escrita sapiência: "Pois
não há criatura cuja existência interior seja tão forte que não seja
em grande parte determinada pelo
que lhe é exterior". Nossa sobredeterminação -pela sociedade,
pela posição entre as gerações, pelo passado da família- não poderia ser melhor expressa nem poderíamos ser melhor lembrados de
que nós mesmos vamos sobre determinar os que vierem depois,
afetando até mesmo heroínas tão
intensas como Dorothea Brooke.
A resposta de Eliot, por antecipação, à crítica de Henry James,
que a acusava de "desperdiçar"
Dorothea no romance, está concentrada em uma frase do último
parágrafo do livro: "O crescente
bem do mundo depende, em parte, de atos que não fazem história". James talvez concordasse,
mas poderia murmurar que o
crescente bem do mundo e o da
arte da ficção são assuntos um tanto diferentes. A força única de
George Eliot está em nos persuadir, mais do que qualquer outro
romancista, de que o bem do
mundo e o bem do romance são
finalmente passíveis de reconciliação.
Harold Bloom é crítico literário e professor nas
universidades de Yale e Nova York. Publicou "A
Angústia da Influência" (Imago) e "O Cânone
Ocidental" (Objetiva), entre outros. Ele escreve
mensalmente na
Folha.
Tradução de Arthur Nestrovski.
|