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Pesquisa aponta que romances brasileiros publicados entre 1990 e 2004 seguem tendência das telenovelas
e sub-representam ou representam de forma estereotipada as classes sociais e étnicas menos privilegiadas
Forno, fogão e favela
MARCOS STRECKER
DA REDAÇÃO
Os personagens dos romances brasileiros contemporâneos são homens, de
classe média e moram em
cidades, e negros, mulheres, velhos e
pobres têm pouca ou nenhuma voz.
Em números: 62,1% dos personagens são homens; 79,8% dos personagens são brancos (contra 7,9% negros e 6,1% mestiços); 73,5% dos
personagens negros são pobres (veja
os números ao lado).
Isso é o que apontam os dados de
uma pesquisa coordenada pela professora de literatura brasileira Regina Dalcastagnè, do departamento de
teoria literária e literaturas do programa de pós-graduação em literatura da Universidade de Brasília.
Dalcastagnè orientou 17 alunos da
UnB na pesquisa "Personagens do
Romance Brasileiro Contemporâneo", que analisaram 258 romances
publicados entre 1990 e 2004 pelas
editoras Record, Rocco e Companhia das Letras -escolhidas por serem consideradas as "mais importantes" do mercado editorial para a
ficção nacional.
O objetivo do levantamento, segundo Dalcastagnè, foi analisar a ausência de representação ou a representação estereotipada de determinados grupos dentro da literatura
-do ponto de vista de raça, religião,
classe social, profissão etc. "É uma
discussão que se faz com freqüência
em relação às telenovelas brasileiras,
mas não se costuma indagar em relação à literatura", afirmou à Folha.
A pesquisadora rebate o risco embutido na pesquisa, que é o de resvalar no dirigismo ou no policiamento
ideológico: "Não há a menor intenção de policiar. Não tenho nenhum
modelo para o que seria correto na
literatura. Mas há um estranhamento, sim. Quando o negro aparece, é
quase sempre como bandido. É o
que os movimentos negros reclamam. Quando aparece uma negra
na novela, ela está na cozinha. Da
mesma forma ocorre na literatura".
"Politicamente correto"
"Eu ficaria espantado se o resultado [da pesquisa] tivesse sido outro",
disse à Folha Alcides Villaça, professor de literatura brasileira na USP.
"Ainda que a coordenadora tenha
afirmado que "nunca nos dispusemos a prescrever o que seria correto", sinto que há por trás da pesquisa
uma forte motivação do "politicamente correto". E aqui cabe uma
questão de fundo: não temos, como
leitores de ficção, nenhum direito ao
horror, ao trágico, ao injusto, ao humilhante, ao impiedoso, em suma,
aos abismos todos da subjetividade e
da vida social, que tantos escritores
nos fazem viver de modo crítico, expondo as violências e as ideologias
que as mascaram?"
Já o escritor Marçal Aquino aponta o lado positivo da pesquisa: "Os
resultados confirmam que, em boa
medida, toda literatura é um testemunho de seu tempo, já que, de um
modo geral, a realidade dos personagens examinados não é nem um
pouco diferente do que se passa no
real concreto", disse à Folha.
Mas Aquino concorda que pode
haver riscos no uso que se faz dos
dados: "O mérito de um trabalho
desse gênero é servir como constatação de um estado de coisas, mas
nunca como balizamento para qualquer escritor -sob pena de colocar
em risco algo inegociável: a liberdade absoluta na hora de escrever".
"Tentar inverter o jogo"
A autora rejeita qualquer intenção
de dirigismo. Para ela, "a intenção é
fazer um mapeamento, mostrar o
que está acontecendo com a literatura. Os autores estão trazendo para
dentro das obras representações que
estão acostumados a ver. Acabam
reproduzindo mesmo sem querer
essas representações. Mas eles também podem tentar fazer uma crítica,
tentar inverter o jogo". Segundo ela,
"não existe nenhuma crítica aos autores de hoje, achando que antes tenha sido diferente ou melhor".
Por outro lado, Villaça pondera:
"Será que levantamentos quantitativos têm grande importância para a
dedução de qualquer aspecto decisivo dos romances tabulados, quando
se sabe que a literatura se constrói, se
expressa e se interpreta, antes de
mais nada, no âmbito e no reconhecimento das singularidades?".
E emenda: "Se a literatura tivesse
sido, desde o início, espelho das virtudes desejáveis, não se teria recomendado a expulsão dos poetas da
República. E os estudos literários se
organizariam como um ramo positivamente exemplar da pedagogia.
Aboliríamos Machado, Graciliano,
Clarice, Rubem Fonseca, Dalton
Trevisan, Raduan Nassar e tantos
outros para colocar quem, mesmo,
no lugar?".
A literatura brasileira contemporânea é mais preconceituosa em relação a outros países ? Na Alemanha
os imigrantes turcos não são representados como marginais? Ou os
árabes na França? "Deve acontecer a
mesma coisa", diz Dalcastagnè.
"Apesar de a literatura ter um status
privilegiado e de fazer opções mais
aprofundadas, a idéia [da pesquisa]
é mostrar que a literatura reproduz,
reafirma esses preconceitos. Não estou fazendo uma crítica nem uma
comparação em relação à literatura
de outros países", afirmou.
"Cidade de Deus" e "Inferno"
A pesquisa -que exclui contos e
outros gêneros literários- também
aponta que dois romances "desequilibraram" a pesquisa: "Cidade de
Deus" (publicado em 1997 e relançado em 2002), de Paulo Lins, e "Inferno" (2000), de Patrícia Melo (ambos
da Cia. das Letras), respondem sozinhos por 20% dos personagens negros identificados em todo o estudo.
"É bastante visível, a partir de "Cidade de Deus", de Paulo Lins, uma
preocupação dos novos autores em
trazer personagens que estavam à
margem da sociedade. Ele abriu algumas frentes que ainda não estão
completamente preenchidas", afirma Dalcastagnè.
Os resultados também não captam
uma possível (mas pouco provável,
segundo Dalcastagnè) "evolução"
da representação: "É difícil saber se
isso está mudando, mas será possível com o prosseguimento do levantamento, que vai pesquisar novos recortes", disse a pesquisadora. "Sobre
homossexuais, acho que hoje estão
mais presentes do que na época de
Machado de Assis." Mas, segundo a
autora, o número de personagens femininos devia ser maior na época
dele: "Os homens hoje se sentem
mais constrangidos a escrever pela
perspectiva feminina, uma vez que
as mulheres e os grupos reivindicam
mais espaço. Os homens se sentem
com pouca legitimidade, e Machado
não teria esse problema", afirma.
O estudo será publicado em novembro na revista "Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea",
do Programa de Pós-Graduação em
Literatura da UnB. A parte seguinte
se concentrará nos anos de 1965 a
1979: "Já temos 60 livros lidos, das
editoras Civilização Brasileira e José
Olympio".
O novo estudo, que deve estar
pronto em julho de 2006, não terá
apenas o recorte do período que
compreende o regime militar mas
também obras canônicas de outras
épocas, incluindo nomes como Aloísio Azevedo, Machado de Assis e José de Alencar, além de peças de teatro e de cinema, para fazermos uma
comparação", completa.
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