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A SOCIEDADE DA CULPA
EM ENTREVISTA À FOLHA, PAUL FLATTERS, DA FUTURE FOUNDATION, DIZ QUE A ASCENSÃO DO "ESTADO-BABÁ"
PODE ATINGIR NÍVEIS DE COERÇÃO INÉDITOS AO LEGITIMAR A ANSIEDADE DEMONSTRADA PELOS INDIVÍDUOS
DANIEL BUARQUE
DA REDAÇÃO
A
notícia é má para quem gosta de beber, fumar, comer
comidas gordurosas, praticar esportes perigosos e até
assistir à televisão ou tomar banho
de sol: há uma marcha crescente do
"puritanismo" e uma tendência cada vez maior de um "ataque ao prazer", proibindo ou regulamentando
as atividades que proporcionam satisfação ao indivíduo na sociedade.
Essa é a conclusão de um abrangente estudo cuja versão preliminar
acaba de ser publicada no Reino
Unido pela Future Foundation, organização que monitora e analisa
tendências sociais.
É a intolerância para com
pessoas que querem viver um estilo de vida alternativo que pode vir a ser nocivo para sua saúde
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Em entrevista à Folha, o diretor-executivo da fundação e ex-chefe de
análise e pesquisas da BBC, Paul
Flatters, aponta que o "novo puritanismo" não é uma tendência conservadora do ponto de vista sexual, mas
um controle público e legal sobre o
comportamento social e mercadológico de consumidores, evitando todo tipo de atividade de "risco".
A tendência ao autocontrole e à
correção social acaba por influenciar
o próprio Estado a impor restrições,
levando-o a ser considerado uma
"babá" da sociedade -"nanny state", em inglês-, criando um processo de mão dupla.
A Future Foundation, que faz estudos de mercado para empresas como a Eletrolux, a Microsoft, instituições governamentais e ONG ouviu
cerca de mil pessoas na Inglaterra e
constatou que um percentual muito
similar dos entrevistados, cerca de
70%, acha que o governo deve cuidar tanto das finanças da nação
quanto da regulamentação do consumo de álcool.
Mais de um terço deles concorda
em que se deve pensar duas vezes
antes de dar chocolates como presentes, e 45% acham que o governo
deveria proibir a colocação de máquinas para a venda de doces em
hospitais e escolas.
Do controle do uso de drogas passa-se à regulamentação de velocidade nas ruas e estradas, proibição e
restrição do consumo de álcool, cigarro e até mesmo de chocolates. Para Flatters, dentro de cinco anos a influência e o poder de regulamentação do Estado deverá controlar até o
consumo de doces, atividades de tiro
esportivo, o modo de assistir à TV e
a ingestão de sanduíches de bacon.
Na entrevista abaixo, Flatters explica as formas como surgem e como se comportam o que ele chama
de "novos puritanos", pessoas que,
segundo ele, passam a achar intolerável viver com o risco, a incerteza, e
passam a querer tudo controlado.
Pessoalmente, Flatters se diz favorável a muitas das restrições discutidas individualmente, mas se mostra
preocupado com a tendência de
muitas delas serem aprovadas em
conjunto e passarem a controlar
quase todos as possibilidades de
ação dos indivíduos.
Folha - Como surgiu a pesquisa que
vocês dizem apontar a existência de
um "novo puritanismo"?
Paul Flatters - Como fazemos com
uma certa freqüência, buscamos as
idéias baseadas em outros dados de
pesquisas. Percebemos que havia essa nova tendência crescente, segundo a qual as pessoas procuram restringir qualquer mercado em que
haja elementos relacionados ao prazer.
Estamos numa fase inicial da pesquisa, mas que nos fornece elementos para comprovar que há, sim, essa
tendência, que afeta a sociedade e o
mercado. A pesquisa ainda deve se
estender até o próximo ano para
consolidarmos os dados e tirarmos
conclusões, mas já conseguimos informações bastante interessantes.
Folha - Quais foram as principais
conclusões do estudo?
Flatters - Nossa descoberta-chave
foi a de que muitas coisas que costumávamos tolerar e aceitar como
comportamentos completamente
normais na sociedade estão começando a sofrer restrições por serem
vistos como causadores de riscos para outras pessoas.
Por exemplo, tem sido dada muita
atenção à dieta das pessoas, à disponibilidade de fast-foods, comidas
gordurosas e outras coisas do tipo,
com as quais nunca havíamos nos
preocupado antes.
Para completar, obesidade e sobrepeso estão se tornando assuntos
de saúde pública. É uma combinação de preocupação pessoal com a
saúde e a segurança mas também a
vontade de limitar o comportamento alheio, jogando a responsabilidade nas costas do Estado.
Folha - E por que isso acontece?
Flatters - Por uma série de fatores.
Em primeiro lugar, há o fato de que
as pessoas estão cada vez mais ansiosas, entre outras coisas, com a saúde.
Isso as leva a se comportarem de forma cada vez mais irracional. Acho
que também há um apetite crescente
por assuntos novos. Aqui na Inglaterra a economia vai muito bem, as
pessoas estão mais ricas do que em
qualquer outra época da história e,
dessa forma, buscam novas preocupações, que não apenas o dinheiro.
Folha - Então é um problema típico
de países ricos e desenvolvidos?
Flatters - Não sei responder, na
verdade, já que a pesquisa foi realizada apenas na Inglaterra. Mas, a
partir dessa pesquisa, posso afirmar
que o interesse por esses temas cresce quando a economia também
cresce.
Folha - O sr. diria que há alguma influência da mentalidade norte-americana nesse tipo de comportamento
dos ingleses?
Flatters - Sim, acho que há. Uma
das coisas que percebemos é que a
Inglaterra está importando dos EUA
essa cultura da compensação. Não
há mais a idéia de que acidentes não
acontecem e de que ninguém é culpado pelas coisas que dão errado;
agora, ao contrário, há uma forte
tendência em procurar jogar a culpa
em alguém sempre que algo não dá
certo.
Surgem organizações fora da esfera pública que buscam zerar a possibilidade de as pessoas provocarem
danos a si mesmas pelo consumo de
determinados produtos. Esses tipos
de comportamento e de cultura são
muito claros nos EUA e parecem estar chegando com força à Inglaterra.
Folha - Essa tendência à restrição
das liberdades tem a ver com aquela
imposta nos Estados Unidos depois do
11 de Setembro?
Flatters - Acho que há um pouco
disso, sim. O terrorismo sem dúvida
aumentou a preocupação e a paranóia da sociedade, impulsionando a
tendência à regulamentação e às restrições à liberdade.
Mas acho que se trata de um problema mais amplo, que era importante nos EUA mesmo antes do 11 de
Setembro, como a proibição do fumo em locais públicos e coisas do tipo. Os atentados terroristas provavelmente aceleraram todo o processo, mas não foram sua causa isolada.
Esse processo é anterior.
Folha - Podemos comparar esse processo com a febre do "politicamente
correto"?
Flatters - Acho que os dois estão
muito ligados, mas não de forma óbvia. Trata-se de um declínio da tolerância em relação ao comportamento de outras pessoas. De certo modo,
é o declínio da tolerância para com
comportamentos diversos, é a intolerância para com pessoas que querem viver um estilo de vida alternativo, que pode vir a ser nocivo para
sua saúde. Aceita-se menos isso.
Até certo ponto, podemos dizer
que isso é o oposto do politicamente
correto, já que este último, acredito,
é a incapacidade de criticar qualquer
grupo minoritário.
Esse processo de que falamos é o
contrário, pois ataca grupos centrais
da sociedade, caso seu comportamento seja considerado pouco saudável, ruim como política pública,
ameaçador para outras pessoas.
Folha - Não é difícil realizar um estudo crítico como esse, se considerarmos
que as pessoas que querem impor essas restrições públicas na verdade pretendem apenas proteger os indivíduos?
Flatters - Talvez seja verdade. O
ponto que queremos deixar claro é
que não é errado ter uma preocupação com o bem-estar da sociedade.
Item por item, a opção pelos limites
parece bem aceitável. Eu mesmo concordo com muitas das coisas que
acontecem. Não sou fumante e concordo, por exemplo, que o fumo deve
ser cada vez mais restringido. Sou a
favor, mas esse não é o ponto.
O que queremos sublinhar é que, se
cada uma dessas novas peças de regulamentação for oficializada, por
mais que cada uma delas seja aceitável individualmente, ao reuni-las, estamos gradualmente mudando o
mundo. Se todas as restrições e limitações que estão sendo defendidas
por grupos específicos forem aprovadas na velocidade em que está ocorrendo, em dez anos não haverá nenhuma parte da legislação intocada.
Claro que podemos dizer que as pessoas que defendem essas regulamentações estão apenas tentando proteger a sociedade, mas há uma linha tênue entre as duas coisas. Às vezes podemos proteger pessoas com medidas que acabam tendo efeitos negativos na vida coletiva da sociedade.
Dou um exemplo: é cada vez mais
difícil para as escolas inglesas conseguirem seguro para levar as crianças
em passeios de férias. É um tema
constante no país há mais de 15 anos.
Levar as crianças para a natureza, para praticar esportes, esse tipo de coisa, está muito difícil porque as seguradoras não sentem segurança para
se responsabilizarem por esse tipo de
atividade, e o resultado é que as crianças estão perdendo em diversão e em
conhecimento.
Claro que a preocupação é correta e
há algum risco nesse tipo de atividade, mas o resultado é que as crianças
são simplesmente alijadas desse tipo
de experiência. As preocupações com
a saúde e a felicidade são positivas,
mas algumas das conseqüências das
ações de regulamentação acabam
funcionando de forma contrária, afetando, desse modo, a qualidade de vida das pessoas.
Folha - Há efeitos econômicos envolvidos nessas restrições?
Flatters - Claro que, se algumas dessas regulamentações realmente forem aprovadas, muitos setores da
economia irão sofrer. O turismo vai
perder, os setores associados ao lazer,
como um todo.
O próprio McDonalds tem tido reduções nas vendas e nos lucros na Inglaterra a cada ano. Isso cria, do ponto de vista econômico, uma diminuição no bem-estar da sociedade.
Folha - Como podemos distinguir a
preocupação com o bem-estar social
do "neopuritanismo"?
Flatters - É muito difícil. O problema é que há indivíduos que escolhem
os temas a respeito dos quais são
muito tolerantes ou pouco tolerantes.
As pessoas são muito interessadas em
proteger sua própria liberdade. Se
gosto de fumar e beber, quero que esses meus hábitos sejam tão livres
quanto possível, mas sou mais duro
com outros hábitos que não tenho.
Essa é uma das grandes dificuldades, pois cada indivíduo só quer regular e limitar as atividades daquilo
de que não gosta, mas, ao contrário,
proteger os próprios hábitos.
A linha é muito difícil de ser traçada, e se trata de um tema ainda muito
pouco estudado.
Folha - Quais são as possíveis conseqüências desse cenário de extrema regulamentação e restrição de consumo?
Flatters - Certamente o "Estado-babá", mas potencialmente algo mais
profundo, sério e disseminado pela
sociedade, algo mais próximo de um
"Grande Irmão", que controla todos
os movimentos de cada indivíduo da
sociedade.
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