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Ponto de fuga
Educação sentimental
JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
Na semana passada, esta coluna se
referia a dois westerns: "Flechas
Ardentes", de Delmer Daves, e "A
Última Fronteira", de William
Wyler. Ambos supõem que o pacto é o bom
regulador de conflitos coletivos. Mas assinalam também que nenhum contrato se
impõe por si só. Ele precisa, para que suas
regras sejam respeitadas, de um aprendizado concreto. A letra se torna vida quando é
ponderada e realista e, mais do que isso,
quando passa pela experiência da história,
muitas vezes dolorosa e traumatizante.
Maurice Agulhon é o grande estudioso
desses sentimentos vividos por grupos humanos, sentimentos que revestem de carne, sangue, pulsações, entusiasmos e ódios
o esqueleto das normas e dos conceitos.
Um de seus livros, publicados já há tempos
no Brasil, "1848 - O Aprendizado da República" (Paz e Terra), conta de que maneira a
república, uma noção política abstrata, insere-se, por sobressaltos, na história francesa. Sua "absorção" progressiva, graças à
modificação dos "sentimentos" que inspirou, teve um papel crucial. República não
se afirma como uma definição, um conceito ou uma fórmula. Pode ser uma deusa,
um objeto de desejo ou de ódio, uma palavra de ordem, uma ameaça tremenda, um
espantalho, uma sereia. Diz Agulhon:
(Marx) "parece ter pensado que (...) a república, sistema de relações políticas impessoais, seria, por isso mesmo, transparente
nas relações de classe. (...) Isso não ocorreu,
por muitas razões; uma talvez seja que a
República era menos secamente abstrata
do que parecia. "Mistificadora" ou não, ela
não trazia a morte dos idealismos políticos,
mas um idealismo a mais".
Sem lugar
Agulhon, em vários textos, mostra o sincretismo entre as aspirações pela república
e pela liberdade. Ele foi tecido durante todo
o século 19. Constata também que, cíclicas
como as estações, como o tempo das cerejas maduras e vermelhas, ambas retornam,
incansáveis, porque, a cada vez, foram
"traídas".
O republicanismo mais radical lembra os
versos de Vicente de Carvalho sobre a felicidade: está onde a pomos e nunca a pomos
onde nós estamos. Nas revoluções de 1789,
1830, 1848, 1871, muitos supõem que a república não consegue se impor porque
"não era a boa", porque foi adulterada em
seus princípios, porque os líderes a sacrificaram em nome dos próprios interesses. A
"boa" república, como a "boa" revolução,
estará sempre por vir. Isso sugere o pressuposto de que elas se situam para além dos
homens, num admirável futuro inalcançável, já que o presente confere à idéia, ao
conceito, uma insuportável concretude.
Essa tradição que investe no deslocamento incessante do regime perfeito caracteriza
muitos pensamentos de esquerda. Ela levou tanto a convicções heróicas e firmes,
mas literalmente suicidas, quanto a argúcias de todo tipo, que oscilam entre a boa fé
e o oportunismo. Estar sempre mais "à esquerda" pode significar o conforto de uma
visada ou de uma crença, que evita enfrentar o aqui e o agora. As ilusões não se desfazem porque não são reconhecidas. É uma
acomodação do espírito disfarçada em revolta. Dessa perspectiva, lucidez só pode
ser uma conquista progressiva e parcial.
Clássico
A revista francesa "Le Nouvel Observateur" selecionou o romance "Nove Noites"
(Cia. das Letras), de Bernardo Carvalho,
para sua rubrica "ovações", sob o título:
"Carvalho, bravo!". Comenta com entusiasmo e conclui: "É a versão romanesca
dos "Tristes Trópicos" contemporâneos".
Dureza
Estar no mundo em desconforto; perceber que os fios de compreensão estão envolvidos por nebulosas incertas; não abdicar da pouca clareza (ou da paranóia) que
cabe a cada um; não se desobrigar de si aderindo a um partido, a uma crença; não se
conformar com qualquer explicação do
mundo, incluindo as próprias; ser avesso às
certezas e aos rancores: os personagens de
Bernardo Carvalho mostram o esforço que
faz a consciência para sobreviver asperamente. São radicais inconformistas, não
por escolha, mas por saberem que não há
caminho seguro. É uma clarividência embaçada e sem paz.
Jorge Coli é historiador da arte.
e-mail: jorgecoli@uol.com.br
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