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A vida breve
De Paris a Nova York, Sontag registra com paixão fatos de sua vida privada
e do momento histórico que vivenciou, como o entusiasmo sexual e a mistura
de alta e baixa culturas
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DO "NEW YORK TIMES"
A mais proeminente
intelectual de sua
geração em Nova
York, Susan Sontag
parece, para o leitor
de seus diários, ter preenchido
cada momento ocioso com
uma anotação. Ela escreveu em
blocos de estenografia e cadernos de espiral, diários de capa
dura e até em folhas de papel
avulsas.
Esse turbilhão de vida e
idéias foi encontrado em diversos locais no apartamento de
muitos quartos na rua 24 com a
Décima Avenida, em Nova
York, onde ela passou seus últimos anos; Sontag morreu em
28 de dezembro de 2004, pouco antes de completar 72 anos.
O interesse de Sontag por um
diário tradicional -com inserções datadas e frases ponderadas- era ocasional. Há surtos
de anotações diárias, mas mais
típicas são as listas: de filmes
que viu, livros que queria ler,
lugares onde comer e beber nas
cidades que lhe interessavam; e
de palavras, em geral em inglês,
mas às vezes em francês, alemão, grego, italiano e espanhol.
Ardor de estudante
Há listas de autores, poetas
ou pintores notáveis em um determinado momento, tudo rabiscado com a intensidade
cheia de interesse de uma estudante, intensidade que preservou durante toda a vida.
Em certos períodos ela anota
todos os detalhes de sua vida
privada com cuidadoso esmero; em outros, relacionamentos
íntimos parecem quase passar
despercebidos. Trechos tentativos de romances que escrevia
tornam imprecisa a separação
entre drama privado e narrativas literárias ou intelectuais.
Vista sob a luz de suas realizações e sua fama, a vida de
Sontag parece ter uma coerência admirável. Sua personalidade pública era duradoura e inconfundivelmente sua. Mas,
nos diários, o esforço nesse
sentido aparece repetidamente: a reelaboração da vida e das
idéias, a concentração total,
juntamente com a excitação
que sentia quando as coisas finalmente corriam bem.
Com freqüência ela medita
sobre essa constante autoconstrução, e de fato alguns aspectos de sua vida -a mistura de
alta e baixa culturas, o entusiasmo sexual, o intelectualismo apaixonado- tornar-se-iam, no início dos anos 60, marcos da vida de Nova York.
Os trechos selecionados partem do final de 1958, quando
Sontag estava prestes a completar 26 anos. Seu casamento
com Philip Rieff enfrentava
problemas; com uma bolsa de
um ano para estudar no exterior, ela pretendia instalar-se
em Oxford (Inglaterra), mas
acabou indo para Paris.
29 de dezembro de 1958,
Paris
St. Germain des Prés. Não é
igual a Greenwich Village, exatamente. Por um lado, os expatriados (americanos, italianos,
ingleses, sul-americanos, alemães) em Paris têm um papel
diferente, + autoconscientes do
que os provincianos (p.ex., a garotada de Chicago, da Costa
Oeste, do Sul) que vão para Nova York. Não há uma ruptura de
identificação nacional e má
identificação. A mesma língua.
Sempre se pode voltar para casa. E, de todo modo, a maioria
dos moradores do Village é nova-iorquina -expatriados internos, até mesmo municipais.
A rotina dos cafés. Depois do
trabalho, ou tentando escrever
ou pintar, você vai a um café
procurar pessoas conhecidas.
Preferivelmente com alguém,
ou pelo menos com um "rendez-vous" definido. [...] Deve-se
ir a vários cafés -média: quatro- numa noite.
Ainda, em Nova York
(Greenwich Village) há a comédia comum de ser judeu. Isso
também não existe nesta boemia. Não é tão "heimlich" [familiar]. Em Greenwich Village,
os italianos -o pano de fundo
proletário contra o qual judeus
desenraizados + provincianos
exibem seu virtuosismo intelectual e sexual- são pitorescos, mas bastante inofensivos.
Aqui, árabes em bandos turbulentos.
[...]
31 de dezembro
Sobre manter um diário. É superficial entender o diário como apenas um receptáculo para seus pensamentos particulares, secretos -como uma confidente surda, muda e analfabeta. No diário não apenas eu me
expresso mais abertamente do
que poderia com qualquer pessoa, eu me crio.
O diário é um veículo para
meu sentido de individualidade. Ele me representa como
emocional e espiritualmente
independente. Portanto (infelizmente) ele não apenas registra minha vida diária real, como
-em muitos casos- oferece
uma alternativa a ela.
É comum haver uma contradição entre o significado de
nossos atos para com uma pessoa e o que dizemos sentir sobre essa pessoa num diário.
Mas isso não significa que o
que fazemos é raso, e só o que
confessamos a nós mesmos é
profundo. As confissões, quero
dizer confissões sinceras, é claro, podem ser mais rasas que os
atos. Estou pensando agora no
que li hoje (quando fui até o
Boulevard Saint-Germain, 122,
verificar sua correspondência)
no diário de H. [Harriet Sohmers, escritora] sobre mim
-aquela avaliação rápida, injusta, impiedosa de mim em
que ela termina dizendo que
realmente não gosta de mim,
mas minha paixão por ela é
aceitável e oportuna.
Deus sabe que isso dói, e sinto-me indignada e humilhada.
Raramente sabemos o que as
pessoas pensam de nós (ou melhor, pensam que pensam de
nós). [...] Se me sinto culpada
por ler o que não se destinava
ao meu olhar? Não. Uma das
principais funções (sociais) de
um diário é exatamente ser lido
furtivamente por outras pessoas, as pessoas (como pais +
amantes) sobre as quais só somos cruamente honestos no
diário. H. um dia lerá isto?
[...]
Escrever. É corruptor escrever com o intuito de moralizar,
de elevar os padrões morais das
pessoas.
Nada me impede de ser uma
escritora a não ser a preguiça.
Uma boa escritora.
Por que escrever é importante? Principalmente por egoísmo, suponho. Porque eu quero
ser aquela persona, uma escritora, e não porque existe algo
que preciso dizer. Mas por que
não isso também? Com um
pouco de reforço de ego -como
o "fait accompli" [fato consumado] que este diário oferece-
conquistarei a confiança de que
eu (eu) tenho algo a dizer, que
deve ser dito.
Meu "eu" é fraco, cauteloso,
salutar demais.
Os bons escritores são egoístas desenfreados, chegando à fatuidade. Homens sãos, os críticos, os corrigem -mas sua sanidade é parasita da fatuidade criativa do gênio.
19 de fevereiro
Ontem (no fim da tarde) fui a meu primeiro coquetel em Paris, na casa de Jean Wahl [filósofo] -na péssima companhia de Allan Bloom [filósofo]. Wahl correspondeu bastante às minhas expectativas -um velhinho miúdo e magro, como um passarinho, de cabelo branco e liso e boca larga e fina, até bonito, como [o ator] Jean-Louis Barrault será aos 65, mas terrivelmente ansioso e desleixado.
Terno preto largo com três grandes buracos nos fundilhos, por onde se podia ver sua cueca (branca), + ele acabara de chegar de uma palestra no fim da tarde -sobre Claudel- na Sorbonne. Tem uma mulher tunisiana alta e bonita (de rosto redondo e cabelo preto repuxado para trás) com a metade de sua idade, acho que 35-40 anos, + três ou quatro filhos pequenos.
Também estavam lá Giorgio de Santillana [historiador da ciência]; dois artistas japoneses; senhoras esguias com chapéus de pele; um homem de Preuves; crianças de tamanho médio saídas diretamente de Balthus [pintor francês], com fantasias de Carnaval; um homem que parecia Jean-Paul Sartre, só que mais feio e manco, e era Jean-Paul Sartre; e muitas outras pessoas cujos nomes nada significavam para mim. Conversei com Wahl + de Santillana + (inevitavelmente) com Bloom.
O apartamento fica na rua Peletier, é fantástico -todas as paredes são desenhadas + rabiscadas + pintadas pelas crianças e por amigos artistas-, com móveis escuros entalhados da África do Norte, 10 mil livros, toalhas de mesa grossas, flores, quadros, brinquedos, frutas -uma desordem maravilhosa, eu achei.
28 fev.
Ouvi Simone de Beauvoir falar sobre o romance ainda ser possível ontem à noite na Sorbonne (com [o jornalista Irv] Jaffe). Ela é magra e tensa, de cabelo preto e muito bonita para sua idade, mas sua voz é desagradável, alguma coisa no tom agudo + a velocidade nervosa com que ela fala.
No fim da tarde li "Reflections in a Golden Eye", de Carson McCullers. Elegante, realmente econômico e "escrito", mas não aprecio a motivação por apatia, catatonia, empatia animal. [...] (Em um romance, quero dizer!)
Início de 1959, Nova York
A feiúra de Nova York. Mas gosto daqui, gosto até da "Commentary" [periódico para o qual contribuiu]. Em NY, a sensualidade se transforma completamente em sexualidade -nenhum objetivo para os sentidos reagirem, nenhum rio, casas, pessoas lindas. Cheiros horríveis nas ruas, e sujeira. [...] Nada exceto comer, se tanto, e o frenesi da cama.
[...]
19 nov.
A chegada do orgasmo mudou minha vida. Estou liberada, mas esse não é o jeito de dizer. Mais importante: ele me estreitou, eliminou possibilidades, tornou as alternativas claras e nítidas. Não sou mais ilimitada, i.e., nada.
A sexualidade é o paradigma. Antes, minha sexualidade era horizontal, uma linha infinita capaz de ser subdividida infinitamente. Agora é vertical; é para cima e acabou, ou nada.
[...]
O orgasmo enfoca. Desejo muito escrever. A chegada do orgasmo não é a salvação, mas, sobretudo, o nascimento do meu ego. Não posso escrever enquanto não encontrar meu ego. O único tipo de escritor que eu poderia ser é o tipo que se expõe. [...] Escrever é gastar-se, apostar-se. Mas até agora eu nem mesmo gostava do som do meu nome. Para escrever, preciso amar meu nome. O escritor é apaixonado por si mesmo... e faz seus livros desse encontro e dessa violência.
[...]
24 dez.
Meu desejo de escrever está ligado a minha homossexualidade. Preciso da identidade como uma arma, para enfrentar a arma que a sociedade tem contra mim.
Ele não justifica minha homossexualidade. Mas me daria -acho- uma licença.
Estou apenas me conscientizando de como me sinto culpada por ser gay. Com H., eu achei que não me incomodava, mas estava mentindo para mim mesma.
Deixo outras pessoas (p.ex., Annette [Michelson, acadêmica de cinema] acreditarem que H. era meu vício, e, se não fosse ela, eu não seria gay, ou pelo menos não principalmente.
[...]
Ser gay me faz sentir-me mais vulnerável.
3/12/61
Conscientizando-me dos "lugares mortos" do sentimento -falando sem sentir nada. (Isso é muito diferente de minha antiga auto-repulsa por falar sem saber nada.)
O escritor deve ser quatro pessoas:
1) o maluco, o "obsédé"
2) o idiota
3) o estilista
4) o crítico
1) fornece o material
2) deixa que ele saia
3) é gosto
4) é inteligência
Um grande escritor tem os quatro -mas você ainda pode ser um bom escritor com apenas 1) e 2); são os mais importantes.
9 dez. 1961
O medo de envelhecer nasce do reconhecimento de que não estamos vivendo agora a vida que desejamos. É equivalente à sensação de desperdiçar o presente.
[Sem data]
O sorriso de Mary McCarthy [escritora e crítica norte-americana] -cabelo grisalho- conjunto vermelho fora de moda + de estampa azul. Fofoca de mulher de clube. Ela é O Grupo [alusão ao romance homônimo de McCarthy]. Ela é gentil com o marido.
[...]
Escrevo para me definir -um ato de autocriação, parte do processo de devir- em um diálogo comigo mesma, com autores que admiro, vivos e mortos, com leitores ideais.
Porque me dá prazer (uma "atividade").
Não tenho certeza de a que propósito serve meu trabalho.
Salvação pessoal -"Cartas a um Jovem Poeta", de Rilke.
27 de julho, 1964
Arte = uma maneira de entrar em contato com sua própria insanidade. Minha necessidade de livrar-me dela, depois de contida. Um manuscrito recém-datilografado, no momento em que é concluído, começa a cheirar mal. É um cadáver -deve ser enterrado, embalsamado, na impressão. Corro para enviar os manuscritos assim que termino, mesmo que seja às 4 da manhã.
O maior crime: julgar.
O maior fracasso: falta de sinceridade.
[Num pedaço de papel, provavelmente de 1964]
Eu ficarei bem hoje de manhã às 7 horas.
[...]
M. [Mildred Jacobsen, mãe de Sontag] não respondia quando eu era criança.
O pior castigo -e a frustração máxima. Ela estava sempre "desligada" -mesmo quando não estava brava. (A bebida é sintoma disso.) Mas eu continuava tentando.
Agora, a mesma coisa com I. [Maria Irene Fornés, dramaturga de origem cubana] Até mais desesperador, porque durante quatro anos ela respondeu. Por isso sei que ela pode.
[...]
Meus defeitos:
- censurar os outros por meus próprios defeitos*
- transformar minhas amizades em casos de amor
- querer que o amor inclua (e exclua) tudo
* mas talvez isso se torne mais forte e evidente -atinge um clímax, quando a coisa em mim mesma está deteriorando, cedendo, desmoronando- como: minha indignação pelos escrúpulos físicos de Susan [Taubes] e Eva [Kollisch, ambas autoras de autobiografias].
NB: meu apetite exibicionista -necessidade real- de comer alimentos exóticos e "nojentos" = uma necessidade de afirmar minha negação dos escrúpulos.
Uma contradeclaração.
[Sem data, provavelmente de 1964]
Ao êxtase intelectual tive acesso desde a primeira infância. Mas êxtase é êxtase.
O "desejo" intelectual como desejo sexual.
[...]
6.085 exemplares de "Contra a Interpretação" foram vendidos. Sobraram 1.915 exemplares da primeira edição.
26/3/65
Pintura recente (Pop, Op) -bacana; a menor quantidade possível de textura-, cores claras.
Precisa ter tela, porque você
não pode fazer as cores flutuarem no espaço.
[...]
Sentimento (sensação) de
uma pintura ou objeto de Jasper Johns poderia ser como o
das Supremes.
Pop Art é Beatle art.
Outro texto-chave: Ortega [y
Gasset], "A Desumanização da
Arte".
Toda época tem sua faixa etária representativa -a nossa é a
juventude; o espírito da época é
ser bacana, desumanizado, jogo, sensação, apolítico.
Jasper Johns -Duchamp
pintado por Monet.
20 de abril
Minha visão é sem refinamento, insensível; esse é o problema que estou tendo com a pintura.
Outro projeto: Webern, Boulez, Stockhausen [compositores]. Comprar discos, ler, trabalhar um pouco. Ando muito
preguiçosa.
Não dar entrevistas até que
eu possa parecer clara + autoritária + direta como Lillian
[Hellman, roteirista norte-americana] na "Paris Review".
4 de julho, Bled
[Iugoslávia]
Mailer: como ser puro e ser um
astro de cinema.
Em todo escritor americano
moderno importante, você
sente uma luta com a língua
-ela é sua inimiga, não trabalha naturalmente a seu favor.
(Completamente diferente na
Inglaterra, onde a língua é fato
consumado.) Você precisa dominá-la, reinventá-la.
8 nov.
Durante dois terços de "Private
Potato Patch of Greta Garbo"
[peça de teatro que tinha a estrela de Hollywood como personagem] eu quis ser Garbo (eu
a observei; queria assimilá-la,
aprender seus gestos, sentir o
que ela sentia) -então, perto
do final, comecei a desejá-la, a
pensar nela sexualmente, a
querer possuí-la. O desejo se
seguiu à admiração -ao se
aproximar o fim de minha visão
dela. A seqüência de minha homossexualidade?
[...]
Em NY, pouca ou nenhuma
"comunidade", mas um grande
sentido de "cena".
[...]
Meu maior prazer nos últimos dois anos veio da música
pop (os Beatles, Dionne Warwick, as Supremes) + a música
de Al Carmines [ator, compositor, diretor, reverendo].
No próximo apto. terei muitas plantas amontoadas.
[...]
Um problema: a delgadeza de
minha escrita -ela é exígua,
frase por frase, discursiva, arquitetônica demais.
24 nov.
Chego toda noite às 2h ou 3h. O
"New York Times" é meu
amante.
[Sem data, final de 1965]
A sensação desagradável do
"feedback" -as reações de outras pessoas ao meu trabalho,
de admiração ou adversas. Não
quero reagir a isso. Sou crítica o
suficiente (+ sei muito bem o
que está errado).
Gosto de me sentir burra. É
assim que sei que há mais coisas no mundo além de mim.
[...]
Minha formação intelectual:
a) Knopf + M[odern] L[ibrary]
b) P[artisan] R[eview] (Trilling,
Rahv, Fiedler, Chase)
c) Universidade de Chicago
P & A via Schwab-Mckeon
Burke
d) "Sociologia"
centro-européia
Os intelectuais judeus alemães
refugiados
Strauss, Arendt, Scholem,
Marcuse, Gourevitch, Taubes
etc. (Marx, Freud, Spengler,
Nietzsche, Weber, Dilthey,
Simmel, Mannheim, Adorno)
e) Wittgenstein de Harvard
f) Os franceses -Artaud, Barthes, Cioran, Sartre
g) Mais história da religião
h) Eu -Mailer,
antiintelectualismo
i) Arte, história da arte
Jasper [Johns]
[John] Cage
[William S.] Burroughs
Resultado final: cageana franco-judaica?
4 jan. 1966
A situação na pintura está tensa: como a ciência. Todo mundo consciente do "problema",
do que precisa ser trabalhado.
Cada artista em suas obras recentes emite "relatórios" sobre
este ou aquele problema, + os
críticos julgam se os problemas
escolhidos por eles são interessantes ou banais. (A abordagem
Barbara Rose.)
Assim, Rosalind Krauss julga
que as lanternas, latas de bebida etc. de Jasper são a solução
para/exploração de um problema periférico (banal) da escultura atual: o que fazer com o pedestal. [...] Enquanto o trabalho
de Frank Stella é considerado
muito interessante porque é
uma solução para problemas
centrais. Sem um conhecimento da história da arte recente +
seus "problemas", quem se interessaria por Frank Stella?
Artistas trabalhando lado a
lado -muito tensos- tudo muda a cada seis meses, conforme
chega mais "trabalho" das diversas academias. É preciso
acompanhar tudo, ter um radar
muito afinado. (Para ser relevante, ser interessante.)
Enquanto na literatura tudo
tem textura muito livre. Poderíamos fazer um pára-quedas e
saltar de olhos vendados -em
qualquer lugar que pousar, se
você se esforçar bastante, a tendência é encontrar terreno valioso interessante e inexplorado. Todas as opções estão aí,
quase não utilizadas.
[...]
[Sem data, final do inverno de 1966]
NYC com sua intelligentsia,
seu consenso liberal, está em
relação ao resto dos Estados
Unidos como o Vaticano, no
meio da Itália, um pequeno Estado privado com enorme poder + riqueza, mas separado.
[...]
Interessante que Merce
[Cunningham] chamou o envasamento + reenvasamento da
planta e o passeio de bicicleta
em "Variations 5" de "atividades de não-dança". Justamente
quando eu tinha me habituado
à idéia da Judson [Igreja, um
espaço teatral no Village] de
que qualquer comportamento
poderia ser considerado parte
da dança.
Duchamp disse duas coisas
contraditórias: (1) que uma
obra de arte tem um (curto) período de vida e (2) que o valor
de uma obra de arte só pode ser
definido pela posteridade.
Uma visão: a arte é uma linguagem, e não apenas o que é. É
essa a visão "conservadora"?
[...]
Jasp[er Johns]: "Não acho
que uma coisa seja qualquer
coisa" (i.e., uma certa coisa)
-Assim De Kooning foi simplório quando destruiu uma
pintura porque X gostava dela.
Talvez X não gostasse do que
De Kooning supunha que ele
encontraria + queria que ele
não gostasse. Talvez ele gostasse de algo totalmente diferente.
27 de junho, Paris
Quando os provos [grupo de
contracultura] realizam happenings à noite nas ruas de Amsterdã, há um risco. Eles provocam a polícia, "dizem" alguma
coisa, tentam fazer algo acontecer. (Mais liberdade etc.)
Os happenings em Nova
York não são somente apolíticos. Eles não arriscam nada.
São exercícios espirituosos de
irracionalidade -totalmente
seguros.
Ah, se meu romance conseguisse ter a velocidade -e o alcance, a relevância- dos dois
últimos filmes de Godard. A úlcera do Vietnã, o som das armas
disparando.
6 ago., Londres
Peter Brook: muito intenso, fala aguda, olhos azuis-claros
-ficando calvo-, usa suéteres
pretos de gola rolê -aperto de
mão quente, generoso-, rosto
carnudo.
[...]
Grotowski:
Por volta dos 35
Como Caligari ou mágico em
"Mário e o Mágico" [de Thomas
Mann]
Ninguém sabe nada sobre sua
vida sexual
Nunca foi crítico
Estudou ioga na Índia por algum tempo. Em sua companhia, ninguém fala de problemas pessoais
9 ago.
Consegui o Romance... eu
acho! Graças a Brook + Grotowski, as últimas peças se encaixaram.
8 out.
Jap [Jasper Johns]; sobre o trabalho de um jovem pintor que
ele viu nesta tarde. "As pinturas
são lindas. Mas só isso."
A autoridade de Jap, sua elegância. Ele nunca está agitado,
apologético, culpado, envergonhado. Certeza perfeita. Assim,
se ele enfia o dedo no nariz ou
come no Automat [loja onde a
comida fica em máquinas automáticas], está sendo elegante.
[...]
As únicas pessoas que deveriam se interessar por uma arte
(ou várias artes) são aquelas
que a praticam -ou praticaram- ou aspiram a. Toda a
idéia de um "público" está errada. O público de um artista são
seus pares.
[Sem data, final de 1966]
Joe [Chaikin, ator e diretor de
teatro] me pergunta esta noite
como me sinto quando descubro, digamos, depois de três
quartos de algo que estou escrevendo, que é medíocre, inferior. Respondo que me sinto
bem e persisto até o final. Estou
descarregando o medíocre que
há em mim. (Minha imagem
excremental do que estou escrevendo.) Está lá. Quero me livrar disso. Não posso negá-lo
por um ato de vontade. (Ou
posso?) Só posso lhe permitir
sua voz, "pôr para fora". Então
posso fazer alguma outra coisa.
Pelo menos sei que não precisarei fazer aquilo de novo.
22 fev. 1967, 3h
Estou terminando a resenha de
"[História de] O" [romance sadomasoquista de Pauline Réage], que se transformou em um
ensaio de 35 páginas. Está bom.
Mas ainda não acredito em
uma palavra do que digo.
É interessante, talvez valioso
-mas não vejo como ser "verdadeiro".
6 abr.
[...]
Na Califórnia, um estranho é
um amigo [potencial] até que
ele prove o contrário; em NY
um estranho é um inimigo até
que prove o contrário. Despendemos muita energia em NY
por causa dessa hipótese.
[...]
A vida ideal: fazer só as coisas
que são indispensáveis.
Duas maneiras de ser -um
santo ou um ladrão.
Minha imagem de mim mesma desde os três ou quatro anos
-o gênio-idiota. Permito que
um compense o outro. Desenvolvo relações para satisfazer
principalmente um ou o outro.
[...]
Sartre (cf. "As Palavras"), a
única pessoa que eu conheço
que teve essa "certeza" do gênio. Vivendo uma vida já póstuma, mesmo na infância. (A infância de um homem famoso.)
Uma espécie de suicídio -com
o "trabalho" do gênio você sabe
que fará quando adulto sua lápide. A lápide mais gloriosa
possível.
Sartre era muito feio -e sabia disso. Então não precisava
desenvolver "o idiota" para
compensar os outros por ser "o
gênio". A natureza havia se encarregado do problema para
ele. Ele não precisava inventar
uma causa para o fracasso ou a
rejeição dos outros. Como eu,
fazendo-me de "idiota" nas relações pessoais. (Por "idiota",
leia-se também "cega".)
Copyright 2006, The Estate of Susan Sontag.
Reproduzido com permissão da Wylie Agency
(UK) Ltd.
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.
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