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Relaxamento transatlântico
Miscigenação no Brasil
deriva de uma moral sexual genuinamente africana,
e não só da plasticidade
dos portugueses
MANOLO FLORENTINO
COLUNISTA DA FOLHA
Há 30 anos, Nagisa
Oshima abalava
Cannes com o seu
polêmico "O Império dos Sentidos".
Filme erótico mas sobretudo
político, dele afirmou o cineasta japonês tratar-se de uma homenagem a certa forma de
amar em franca extinção no Japão contemporâneo. Que seja.
Mas os usos do sexo que hoje
igualmente não passam de privilégio de aldeotas perdidas
nos confins da África certamente nos são mais afeitos do
que os que ora fenecem no Japão. Sabe-se que, para grande
parte das sociedades ditas primitivas, o sexo era tido como
grande depurador social.
Por seu intermédio, as comunidades voltavam à normalidade após a morte de algum
notável ou quando do traslado
das aldeias.
Daí as periódicas festas purificadoras, momentos de culto à
fertilidade e de relaxamento
das normas, ocasiões em que os
casados eram convidados a copular e trocar de parceiros em
público e, os adolescentes, incentivados ao exercício do "coitus interruptus".
Não era diferente entre os
bantus da África meridional assim como, de resto, na maior
parte das sociedades bantus
tradicionais.
Em pelo menos uma delas, a
dos sotos do sul, o sexo também era considerado um ato de
boa educação, devendo o marido oferecer a sua mulher, que
jamais se ofendia, aos seus irmãos de idade como prova de
afetuoso acolhimento.
Na contramão do Ocidente
europeu moderno, as expressões assumidas pela sexualidade bantu até a puberdade se encontravam menos encobertas
pelo mistério e pela interdição
culposa, quando menos porque
a naturalidade com que os filhos viam os seus pais, parentes
e amigos copulando guiava a
sua aprendizagem nos assuntos de Eros. O corpo não era
considerado uma "fonte de
imundícies", conforme o postulado pela evangelização contra-reformista na América, remanescendo o incesto como
severo tabu.
Ainda que os vendas proibissem qualquer jogo erótico na
fase pré-pubere, o comportamento infantil era, em geral,
objeto de grande indiferença
por parte dos adultos. Assim,
abria-se espaço para práticas
como a masturbação pública
ou privada, individual ou coletiva, além de outros jogos entre
jovens pares hetero e homossexuais, de acordo com a clássica
descrição do suíço Henrique
Junod ("Usos e Costumes dos
Bantus") no século 19.
Festa para a puberdade
Entre diversos povos, a menarca era acompanhada por
festas para toda a comunidade
e incluía interlocuções pedagógicas com os mais velhos, nas
quais se ensinava aos jovens as
formas de se conduzirem nos
assuntos referentes ao sexo.
A chegada da puberdade era
expressa no próprio corpo, seja
por meio da circuncisão, entre
os xhosas, thembus, bomvanas,
suazis, lembas, ndebeles e tsongas, seja por meio da excisão
parcial ou total do clitóris, prática comum entre os sotos do
sul, lobedus, tsongas e tsuanas.
A puberdade podia reiterar
uma etapa de liberdade sexual
apenas encontrada entre certas
camadas urbanas de cidades
ocidentais contemporâneas.
Sua chegada podia implicar a
simultânea efetivação de matrimônios arranjados, embora
não raro a puberdade incentivasse os adolescentes a desfrutarem ainda mais plenamente
dos prazeres eróticos, com a
absoluta complacência dos
pais. A única condição era que
as moças não engravidassem,
pois a prenhez comprometia as
futuras negociações matrimoniais entre famílias, clãs e subclãs -ou seja, a virgindade feminina não era atributo necessariamente requerido por todos os bantus.
Tingani ou ukujuma entre os
suazis, gunguissa entre os tsongas, ukuhlobonga entre os zulus e intlombe entre os xhosas
-eis alguns dos nomes assumidos pelos jogos sexuais na adolescência, realizados de acordo
com o modelo do "coitus interruptus".
Após as usuais práticas de sedução, que podiam incluir mostrar as tatuagens e o tamanho
dos lábios vaginais, o rapaz e a
moça se dirigiam à palhoça
mais próxima ou a rincões perdidos das florestas para, não raro sob a discreta vigilância de
alguns companheiros, entregarem-se a seus intercursos.
O ato sexual pleno, com defloramento e ejaculação, era na
maioria das vezes substituído
por masturbações mútuas, embora nem todos os povos o proibissem -desde que não resultasse em gravidez, repita-se,
evitada mediante ejaculações
externas e por meio do uso de
ervas contraceptivas ou de
tampões especiais.
Mesmo onde o virgo intacto
representasse a norma, mil e
um artifícios driblavam-na
-sabe-se que moças chopes, do
sul de Moçambique, burlavam
o tabu por meio da utilização de
frutos que apertavam os lábios
vaginais e expeliam líquidos
vermelhos.
Inspeção da virgindade
A etnologia não sugere que a
liberdade sexual entre os jovens bantus chegasse ao nível
da desfrutada nas ilhas Trobriand, tão bem descritas por
Bronislaw Malinowski no início do século 20. As mães vendas, por exemplo, cripto-repressoras, periodicamente verificavam se suas filhas permaneciam virgens -a inspeção
era realizada pela mais velha aldeã e, confirmada a virgindade,
a menina era carregada em
triunfo pelas vielas nas costas
das mulheres adultas.
Entre os xhosas, ainda quando os jogos amorosos fossem
incentivados pelos próprios jovens, eles mesmos se incumbiam de controlá-los, não permitindo exclusividade sexual
entre os adolescentes, o que
sempre tornava públicos os casos de ausência de hímen ou de
gravidez. Os xhosas também
castigavam as solteiras grávidas, determinando que elas jamais poderiam casar, o que as
condenava ao eterno desterro
para o mundo das inkazanas
(rameiras).
A relativa liberdade sexual da
adolescência bantu terminava
com o matrimônio, sobretudo
para as mulheres.
Mas, se é certo que o menino
é o suporte do homem -e o tráfico atlântico, o suporte da presença africana no Brasil-, não
é implausível que, por caminhos muitas vezes enviesados,
tenhamos herdado um bom bocado da concepção bantu sobre
o lugar do sexo.
A hipótese é simples, embora
de difícil comprovação: nossa
miscigenação deriva não apenas da plasticidade que Gilberto Freyre capturou no português, mas igualmente de uma
moral sexual genuinamente
africana que, longe de ver-se
pulverizada pela depravação
própria do cativeiro -como
queria o mestre de Apipucos-,
contribuiu para o relaxamento
dos costumes que tanto chamou a atenção de cronistas e
viajantes que passaram pela
América portuguesa.
MANOLO FLORENTINO é professor no departamento de história da Universidade Federal do
Rio de Janeiro e autor de "Tráfico, Cativeiro e Liberdade" (ed. Civilização Brasileira). Escreve na
seção "Autores", do Mais!.
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