|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
+ livros
O sociólogo francês Henri-Pierre Jeudy, que faz conferência em SP na terça e lança em junho "O Espelho das Cidades", diz que as aparências corporais realizam uma encenação permanente das fantasias do indivíduo
O teatro efêmero do corpo
JULIANA MONACHESI
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
O corpo está aberto para debate. Sociólogo do Centro
National de Pesquisa Científica (Paris) e professor de
estética na Escola de Arquitetura de
Paris-Villemin, Henri-Pierre Jeudy
dedica-se ao estudo do poder semântico do corpo há muitos anos e
já publicou dois livros sobre o assunto: "O Corpo como Objeto de Arte"
(Estação Liberdade) e "Le Corps et
Ses Stereotypes" (O Corpo e Seus Estereótipos, 2001).
Jeudy está lançando agora no Brasil "O Espelho das Cidades".
Depois de amanhã, às 20h, Jeudy
realiza a conferência de abertura de
"Corpo Representado", no Instituto
Itaú Cultural (tel. 0/xx/11/ 2168-1776), em São Paulo, seminário que
integra o evento "Corpo". Este compreende uma mostra de artes visuais
e uma programação de performances e espetáculos de dança, além de
diversas palestras e mesas-redondas
para investigar este enigmático "gerador de conceitos e modos de expressão da sociedade contemporânea", conforme se apresenta o debate no material de divulgação.
Mas convém deixar de lado preconceitos: o corpo não é tema para
as obras nem para a exposição, e
também não se trata de aproveitar a
"moda" das epidêmicas cirurgias
plásticas. O debate é mais sério, como mostra Jeudy nesta entrevista
feita por e-mail.
Folha - O senhor poderia explicar o
que entende por "imagem corporal" e
"representação do corpo"?
Henri-Pierre Jeudy - Toda pessoa
representa seu corpo ora com prazer, ora com certa inquietação,
quando este já dá sinais de envelhecimento. Mas essa auto-representação é, felizmente, perturbada por
miríades de imagens corporais imprevisíveis. Existe uma antinomia
entre a estabilidade da representação de nossas aparências corporais e
a potência acidental da irrupção de
imagens das quais o corpo é justamente o teatro permanente.
Essas imagens estão ligadas a nossas fantasias mas também à imediaticidade do real, ao que nos acontece
e que não podemos prever. Além
disso, essas imagens ignoram o tempo, elas surgem de maneira incongruente até nossa morte.
Folha - Em "O Corpo como Objeto de
Arte", o sr. parece sugerir uma equivalência entre a "alteridade" e o "corpo estranho". Se o estranho é o "outro", qual é a relação entre o sujeito e
si mesmo e com seu próprio corpo?
Como vê os fenômenos da "abjeção" e
do "disforme" no campo artístico?
Jeudy - O que nos é familiar pode
parecer subitamente estranho. Nosso próprio corpo não pára de nos
surpreender. Para mim, a experiência da alteridade começa em nós
mesmos porque ela também é a descoberta de uma estranheza radical.
Meu corpo é habitado por outros
corpos, ele é heterônimo. Sua aparente unidade se divide, pois sou
sempre suscetível de me ver de uma
maneira que não sou. E o olhar dos
outros me incita a ver-me de modo
diferente. Esse fenômeno de cissiparidade pode provocar distúrbios psíquicos, mas persiste como uma riqueza misteriosa do corpo.
A monstruosidade, a abjeção que
os artistas e os escritores põem em
cena nos revelam o quanto nosso
corpo é capaz de exprimir o pior, segundo uma aparência puramente
estética. Eles não mostram somente
o outro de nós mesmos que não queremos ver mas sobretudo a aventura
psíquica e orgânica do "corpo desmembrado". Tirando sua força de
expressão do que é disforme, a arte
dá forma à estranheza, mesmo a
mais monstruosa, do corpo.
Para o artista, a obscenidade está
ligada ao fato de "representar a si
mesmo para si mesmo", quando o
corpo, como em muitas performances, só mostra a si próprio.
Folha - O sr. afirma que o corpo não
pode existir como objeto de arte porque está em eterna metamorfose. O
que acha das obras de arte que estão
em eterna metamorfose, como as
obras efêmeras, aquelas em decomposição ou as que são constantemente atualizadas?
Jeudy - A idéia do corpo como objeto de arte é, em primeiro lugar, um
desafio! Como em várias cidades do
mundo, homens ou mulheres vivos
tomam o lugar de estátuas e assim
nos mostram que os mil movimentos do corpo são percebidos a partir
da imobilidade absoluta, da petrificação. O corpo existe de maneira
acidental como objeto de arte.
O que é surpreendente é a maneira
como percebemos nosso corpo e o
dos outros por meio de referências
emprestadas à arte e à literatura. E os
obcecados pela beleza buscam sempre, pela cirurgia estética, a referência a modelos. Ora, a metamorfose
do corpo permanece perpétua, às
vezes até imperceptível. O que muitas obras de arte contemporâneas
nos mostram é a maneira como o
efêmero está no centro da aparente
estabilidade de nossas representações do corpo. O efêmero é um sinal
de vida, e não um sinal de morte. A
própria decomposição é um movimento natural do corpo, não é o sinal de uma decrepitude inescapável.
Folha - Qual é o futuro da performance em um contexto de estereótipos e das "superofertas" culturais?
Jeudy - A performance pode, hoje,
parecer um estereótipo cultural, mas
isso não é pejorativo. Temos necessidade desses estereótipos que circulam pela exibição dessas aventuras
do corpo. Com a performance, o
corpo torna-se uma narrativa, torna-se uma linguagem pública que
nos fascina.
A performance é uma realização
da "feira de estereótipos", ela nos
oferece um espelho de mil faces "do
que o corpo é capaz" (Espinosa).
Mesmo aparecendo cada vez mais
como uma convenção cultural, a
performance continua a nos interrogar justamente sobre o poder cotidiano de nossos próprios hábitos
culturais.
Folha - Lygia Clark aparece em seu
livro associada aos "rituais da metamorfose". O senhor conhece mais da
arte contemporânea brasileira?
Jeudy - Em meu livro, falo de uma
antiga performance de Lygia Clark,
intitulada "Baba Antropofágica". A
cena era apresentada como um ritual em que o corpo dos "acavalamentos-baba" reativa em nós o animal autêntico, além do humano, e
não aquém. A performance em geral
é um ritual cultural, uma metamorfose que faz reaparecer tudo o que
ocultamos de nosso corpo, de suas
origens orgânicas. O que sempre me
seduziu no Brasil foi o longo percurso desse conceito "antropofágico"
da arte, que permite entender que as
culturas se comem mutuamente. É
mais interessante, me parece, do que
a idéia de "sincretismo cultural" desenvolvida pelos antropólogos ocidentais. A antropofagia cultural envolve um jogo de tensão, de absorção, de digestão, de rejeição, comparável aos próprios movimentos do
corpo, a sua metamorfose. Mas hoje,
no Brasil, uma das questões que se
colocam à arte contemporânea é saber como essa tradição antropofágica pode produzir novas experiências
artísticas ou como ela pode escapar
da espetacularização de que é objeto.
Eu gosto muito de Hélio Oiticica
porque ele sempre extraiu da vida
cotidiana, do real como ele é, suas
idéias criativas, sem manifestar a
menor demagogia popular. Isso é
muito raro numa época em que a arte faz funcionalismo social.
Enfim, conheço o trabalho de Alexandre Vogler, que expôs cartazes
de nádegas cheias de celulite para
criticar a histeria contemporânea da
cirurgia estética. E essas nádegas,
que não eram regulares do ponto de
vista das normas estéticas, seduziram o olhar de muitos cidadãos. Conheço também as performances de
Alexander Hamburger.
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.
Texto Anterior: 8 - EUA hoje Próximo Texto: Simbolismo das cidades é tema de estudo Índice
|