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Ponto de fuga
Humano, demasiado humano
JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
O mais belo filme do melhor cineasta do mundo." A frase é de
Eric Rohmer, sobre "Tabu" [1931]
de Murnau. A estupenda beleza
das cenas se deve a várias qualidades, em
sua maioria destinadas a celebrar o esplendor do corpo. Não são anatomias torturadas, como as que centraram a arte de Michelangelo. São seres harmoniosos, cuja
plástica foi moldada pelo mar da Polinésia,
inseridos numa natureza paradisíaca.
"Tabu" estabelece um parentesco com o
documentário para melhor negá-lo. O filme não tem atores profissionais. Mostra, ao
longo da história dramática, a pesca, as
danças, o cotidiano dos maoris. Mas tudo
isso em imagens precisamente controladas.
Rohmer escreveu também que Murnau é
um dos raros diretores cuja concepção fotográfica deve mais à pintura dos museus
que à iconografia popular: as imagens de
"Tabu" remetem aos nus da Antigüidade
clássica e do Renascimento. Nisso, pode ser
comparado a um filme que lhe é posterior.
"Tabu" data de 1931; "Olympia", de Leni
Riefenstahl, de 1938. Riefenstahl filmara a
Olimpíada de Berlim, associando, de modo
explícito, os atletas contemporâneos às estátuas gregas.
"Tabu" e "Olympia" banham em neopaganismo. Um é paradisíaco e "natural", outro é esportivo e voluntário. Um tem a nostalgia, o outro a crença confiante num homem ideal. Leni Riefenstahl, mais tarde, faria uma incursão etnográfica na África, da
qual resultaram sublimes fotos dos nubas.
Susan Sontag disse que essas fotos traíam
um olhar comprometido com a estética da
beleza nazista. Ao que Leni Riefenstahl retrucou: "Absurdo. Eu os fotografei belos
como eles são. Deveríamos então dizer que
Deus é nazista, porque os fez assim".
Visor
Se as fotografias tiradas por Leni Riefenstahl entre os nubas são ou não nazistas é
história para ser discutida. O certo é que
Deus tem pouco a ver com isso, pois nenhum fotógrafo oferece uma imagem natural: o que ele produz com sua câmera é
sempre construção que recorta, enquadra,
valoriza ou diminui aspectos representados
do mundo. Leni Riefenstahl e F.W. Murnau
tomam belos corpos para lançar um olhar
amoroso sobre eles, investindo numa tradição cultural que os faz semideuses da juventude e da beleza.
Um terceiro filme, da mesma época, contrariou esse endeusamento da perfeição física, que estava na atmosfera daquela modernidade eugênica de 1930. É "Freaks"
-ou "Monstros" [1932], no título brasileiro. Como "Tabu", aparenta-se ao documentário: seu diretor, Tod Browning, foi
buscar autênticas aberrações de circo para
filmar uma história de amor e de vingança
como nunca houve outra. Traz para o campo do humano aqueles que foram excluídos por Murnau e Riefenstahl: anões, mongolóides, obesos, esqueléticos, corcundas,
homens sem pernas nem braços. Exibidos
em circo, atraem a curiosidade mórbida do
público pela repugnância ou pelo riso que
causam.
A lente de Tod Browning vai insuflar neles uma estranheza surreal e uma vida e
emoções e afetos intensos, revelando, ao
mesmo tempo, a feiúra moral que pode
existir na alma dos belos. "Tabu" e seu
avesso acusador, "Monstros", estão entre
as obras mais poderosas e singulares de toda a história do cinema.
Restos
"Monstros" foi massacrado pelos distribuidores, que talharam à vontade a película.
Chegaram até nós 60 minutos dos 90 originais. Ainda assim, reduzido, o filme guarda
sua força. Saiu em DVD pela Magnus Opus,
responsável também por "Tabu". Não são
lá muito fáceis de encontrar nas lojas. Tomara que "Monstros" tenha a mesma excelente qualidade que presidiu a edição de
"Tabu".
Dentro
Em "Focus on the Horror Films" [Foco
nos Filmes de Terror, Prentice Hall, 1972],
John Thomas escreve sobre "Monstros":
"Ficamos horrorizados, mas ao mesmo
tempo envergonhados, por nosso horror,
pois nos lembramos de que não são monstros, mas seres semelhantes a nós; descobrimos então que fomos enganados por
nossas próprias crenças primárias. Mergulhamos nos abismos de nosso ser doente a
fim de compreender a mais terrível inumanidade que podemos conhecer em nós
mesmos. Cada um dos monstros somos
nós; cada um de nós se encontra entre eles".
Jorge Coli é historiador da arte.
e-mail: jorgecoli@uol.com.br
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