|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
AUTORES
O ciúme na obra-prima de Proust esconde luta contra a inevitabilidade da morte
O lugar e a hora da traição
HAROLD BLOOM
especial para a Folha
O ciúme sexual é a mais romanesca das circunstâncias, assim
como o incesto, segundo Shelley, é
a circunstância mais poética de todas. O romancista da nossa era é
Proust, na mesma medida em que
Freud é nosso moralista. Proust morreu em
1922, ano de um ensaio
sombrio e maravilhoso de Freud, "Alguns
Mecanismos Neuróticos no Ciúme, na Paranóia e na Homossexualidade". Um e outro grandes conhecedores da ironia, celebrantes trágicos do espírito cômico, Proust e
Freud não estão muito
de acordo no que toca
ao ciúme, nem à paranóia, nem à homossexualidade, embora os
dois tomem como
ponto de partida a
consciência de que todos somos bissexuais
por natureza.
Freud começa seu
ensaio notando que o
ciúme, tanto como o
pesar, é uma reação
normal e vem em três
estágios: competitivo,
projetado e delirante.
O primeiro, que é o
mais comum, resulta
de uma combinação
entre o pesar pela perda do objeto amado e a
reativação da ferida
narcísica -a primeira
perda trágica da criança, que perde o pai do
sexo oposto para o do
mesmo sexo. O ciúme
competitivo é normal:
nem por isso deixa de
ser um inferno, com
direito às delícias da
inimizade com o rival
bem-sucedido, de alguma dose de auto-acusação e de uma parcela generosa de bissexualidade.
O ciúme projetado
atribui ao parceiro
erótico a própria infidelidade, ou
os próprios impulsos reprimidos,
e é visto com leveza por Freud, como relativamente inócuo, uma vez
que sua natureza delirante é muito
suscetível à exposição analítica das
fantasias inconscientes. Já o ciúme
delirante é algo de bem mais sério;
também tem origem nos impulsos
reprimidos de infidelidade, mas o
objeto desses impulsos é alguém
do mesmo sexo e isso, segundo
Freud, nos faz cruzar a fronteira
da paranóia.
O que os três estágios têm em comum é um componente bissexual,
haja vista que até o ciúme projetado envolve impulsos reprimidos e
estes incluem desejos homossexuais. Proust, nossa outra autoridade em ciúme, preferia chamar
homossexualidade de "inversão", e numa fantasia mitológica
estabeleceu uma linhagem entre
os filhos de Sodoma, as filhas de
Gomorra e seus sobreviventes no
exílio. Inversão e ciúme, tão intimamente relacionados em Freud,
tornam-se em Proust um par dialético, com a sensibilidade estética
vinculada aos dois como o terceiro
termo de uma série complexa.
Proust é um autor fecundo e generoso ao tratar do ciúme; ninguém jamais se dedicou de modo
tão minucioso e brilhante a apresentar e ilustrar essa emoção; exceto, naturalmente, Shakespeare,
em "Otelo", e Hawthorne, em
"A Letra Escarlate". Os amantes
enciumados de Proust -Swann,
Saint-Loup e, acima de tudo, o
próprio Marcel- sofrem de maneira tão intensa que chega a ser
necessário algum esforço para que
a nossa empatia não passe do limite. Mas não é fácil determinar precisamente como Proust se posiciona com relação ao sofrimento deles, porque suas ironias são muito
agudas e estão por toda parte. A
comédia paira por ali, mas até a
palavra "tragicomédia" soa inadequada para as dores compulsivas desses protagonistas.
A pior ironia de todas é ver que o
ciúme não só expõe o que há de
arbitrário em toda escolha de objeto, mas revela a suposta inevitabilidade da pessoa amada como
uma máscara para a inevitabilidade da morte do amante. O ciúme
de Proust torna-se assim muito
parecido com a pulsão de morte. E
nossa câmara secreta de tortura é
reaparelhada a cada lembrança
das proezas eróticas do outro: o
que era a nossa delícia delicia os
outros.
No ciúme, aquilo que Freud chamava ironicamente de superestimativa do objeto -a amplificação, ou aprofundamento da personalidade da pessoa amada- começa a funcionar não como amplificação da vida (a exemplo do
romance de Proust em si), mas
sim como aprofundamento de um
inferno pessoal. Um personagem
como Swann vai se afundando cada vez mais ao reconstruir os detalhes prosaicos da vida pregressa de
Odette, "com tanta paixão quanto
o esteta que revira documentos
disponíveis da Florença quinhentista, de modo a penetrar mais
profundamente na alma da Primavera da Vanna ou da Vênus de Boticelli".
O esteta de vertente historicista
-como o vitoriano Ruskin, tão
admirado por Proust- torna-se o
arquétipo do amante ciumento,
procurando no tempo perdido
não uma pessoa, mas uma epifania. O ciúme se renova como a lua,
perpetuamente tentando descobrir o que nem lhe interessa mais,
até mesmo depois do objeto do desejo estar literalmente enterrado.
Seu verdadeiro objeto é "aquele
dia, aquela hora no passado irrevogável"; e mesmo esse tempo é
menos real do que uma ficção, um
episódio na história de evanescência da nossa própria identidade.
O ciúme sexual em Proust vem
acompanhado de uma obsessão
por questões de tempo e espaço. O
amante ciumento que, como diz
Proust, desenvolve pesquisas
comparáveis às de um "scholar"
que quer descobrir com suas indagações cada detalhe referente ao
lugar e à duração de cada traição e
infidelidade. Mas "será tão mais
absurdo, afinal, lamentar-se que
uma mulher que nem existe mais
não tenha ciência de que descobrimos o que estava fazendo há seis
anos do que desejar, para nós mesmos, que o público fale de nós
com aprovação daqui a um século?... Os arrependimentos de meu
ciúme retrospectivo tinham origem na mesma ilusão de ótica responsável, em outros
homens, pelo desejo
de fama póstuma".
A batalha estética pela imortalidade constitui uma ilusão de ótica,
mas uma dessas ilusões sobre a vida que
são necessárias à vida,
como notou Nietzsche, e também uma
ilusão sobre a arte que
já é arte. Proust se desvia de seu precursor
invejado Flaubert, na
direção de uma confissão radical do erro.
Romance é inveja,
amor é ciúme, ciúme é
o medo terrível de que
não haverá espaço suficiente para nós mesmos (incluindo espaço
na literatura) e de que
não haverá nunca tempo bastante para nós
mesmos, porque a realidade da vida é a morte. Assim como Freud,
Proust retorna ao profeta Jeremias, o sábio
desagradável que proclamou uma nova interioridade para o seu
povo. Também para
Proust a lei está escrita
dentro de nós e a lei é a
justiça, mas o deus da
lei é um deus ciumento, embora com certeza não seja o deus do
ciúme.
Em "A Passagem do
Complexo de Édipo",
um ensaio escrito dois
anos após a morte de
Proust, Freud reflete
memoravelmente sobre a diferença entre os
sexos e chega ao adágio: "Anatomia é Destino". Anatomia é
destino em Proust
também, mas uma anatomia mentalizada. Os exilados de Sodoma e
Gomorra, mais ciumentos até do
que os demais mortais, tornam-se
monstros do tempo, muito embora sejam também seus heróis e heroínas.
O complexo de Édipo nunca
passa completamente em Proust,
ou em seus principais personagens. O complexo de castração em
Freud -no limite, o medo da
morte- é uma metáfora para o
mesmo desejo velado que Proust
representa por meio da metáfora
complexa do ciúme. O amante
ciumento teme ter sido castrado,
ter sido roubado de seu lugar na
vida, já ter acabado seu tempo legítimo. Seu único recurso é sair
em busca do tempo perdido, com
a esperança de que a recuperação
estética, tanto da ilusão quanto da
experiência, ainda seja capaz de
promover uma ilusão mais elevada do que, tudo indica, pode ter
sido o caso.
Harold Bloom é professor de literatura nas universidades de Yale e Nova York; é autor, entre outros, de "A Angústia da Influência" e "Poesia e Repressão" (Imago). O
Mais! publica mensalmente
seus artigos.
Tradução de Arthur Nestrovski.
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
|