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O romance carnavalesco de Dickens
HAROLD BLOOM
especial para a Folha
O escritor forte pode ser definido
como aquele capaz de desafiar a
própria contingência, isto é, sua
dependência de um precursor.
Existe, por outro lado, um número muito pequeno de autores, desde Homero e o Javista, capazes de
serem fortes sem sofrer a pressão
de um tal constrangimento. São os
grandes originais: Shakespeare e
Freud estão nesse grupo, como
também Dickens.
Dickens não tem precursores
reais; ou melhor, pode-se dizer
que ele devora Tobias Smollett, do
mesmo modo que Shakespeare
devora Marlowe. A originalidade,
uma liberdade autêntica diante
das contingências, é a característica mais notável de Dickens como
autor literário. Isto muito embora,
para nós, hoje, à luz da influência
enorme de sua obra, que se manifesta em escritores tão diversos como Dostoievski e Kafka, pareça
difícil perceber o quanto ele é original.
Para todo romancista posterior,
Dickens constitui-se numa contingência ou "facticidade" impossível de ser evitada ou transcendida, sem risco de automutilação. Veja-se a diferença entre dois
mestres da ficção moderna, Henry
James e James Joyce. A diferença
entre eles não é exatamente Dickens? "Ulysses" consegue aceitá-lo e colhe o prêmio da exuberância. Leopold Bloom é maior do
que qualquer personagem isolado
em Dickens, mas tem qualidades
reconhecidamente dickensianas.
Bem ao contrário do Lambert
Strether de James, em "Os Embaixadores", que se ressente dessa
ausência. O mesmo sentido dickensiano da vida, para além da interioridade, fica faltando em "Retrato de uma Senhora" e até mesmo nos esplendores de "As Asas
da Pomba" e "The Golden
Bowl".
Resenhando "Our Mutual
Friend", de Dickens, em 1865,
Henry James chama "Bleak House" de "forçado", "Little Dorrit" de "artificial" e o novo romance "extraído à força, com pá e
picareta". Mais ou menos na mesma época, ele também descartava
Whitman como um autor de consciência fundamentalmente prosaica, querendo se elevar de qualquer
jeito à poesia. Essa rejeição simultânea de alguns dos maiores trabalhos do romancista mais forte da
língua inglesa e da obra integral do
maior poeta americano estabelece
um padrão de audácia crítica que
ninguém até hoje foi capaz de superar -assim como ninguém superou Dickens como romancista,
nem Whitman como poeta.
Pouco antes de James, em 1860,
John Ruskin, o grande visionário
da superfície, iluminador carismático do senso comum e incomum, chegava a uma conclusão
bem diferente: "O valor essencial
e a verdade dos escritos de Dickens foram insensatamente perdidos de vista por muitos leitores,
mesmo os mais cuidadosos, simplesmente porque ele apresenta
sua verdade em cores dramáticas
ou caricaturais. Isto é insensato,
porque as caricaturas de Dickens,
muitas vezes até grosseiras, não
estão jamais equivocadas. Aceita a
maneira como ele diz as coisas, o
que está dizendo é sempre verdade. (...) Não vamos desprezar as
percepções e a inteligência viva de
Dickens só porque escolheu falar
como se estivesse num círculo de
fogo de palco. Não há um livro em
que ele perca o senso de direção e
propósito; e todos eles -especialmente "Tempos Difíceis"- deveriam ser estudados com a maior
atenção por quem tem interesse
pelas questões sociais."
Dizer de Dickens que ele escolheu falar "como se estivesse num
círculo de fogo de palco" é absolutamente correto: Dickens é o
maior ator dos romancistas, o
mestre mais refinado das projeções dramáticas. Ele mesmo um
grande intérprete, nunca cessou
de interpretar papéis teatrais nos
seus romances, o que não é o menor de seus traços shakespearianos.
Assim como Shakespeare (em
um de seus aspectos) e assim como Rabelais, Dickens é um autor
do carnaval, tanto quanto do fogo
de palco, e sua obra é uma espécie
de festival infinito. O leitor vê-se
no meio dessa festa, que é variada
demais para ser compreendida em
todos os seus aspectos, mesmo depois de muitas releituras. Alguma
coisa sempre escapa ao nosso entendimento. A literatura "abarrotada de vida" de que falava o elisabetano Ben Johnson tem seu melhor exemplo aqui -mais até do
que em Rabelais-, naquela plenitude quase shakespeariana que é a
glória peculiar de Dickens.
Será possível definir essa plenitude a ponto de ter validade crítica? A apresentação shakespeariana não chega a ser uma pedra de
toque para Dickens, nem para
qualquer outro autor, pois, acima
de qualquer outra forma de representação, ela se volta para as mudanças interiores de personagens
que se escutam a si mesmos falando. Dickens não é capaz de tanto.
Seus vilões são grandiosos, mas
não há entre ele um Iago ou um
Edmund. O teste mais relevante e
mais difícil, em que Dickens não
pode mesmo ser bem-sucedido
(sem nenhum demérito), é Falstaff, uma figura com a capacidade
não só de engendrar seu próprio
sentido, mas o de muitos outros
também, dentro e fora dos livros.
Outro teste pior ainda é Shylock,
a mais dickensiana de todas as
personagens em Shakespeare
-ao contrário do Shylock de Dickens, Fagin (em "Oliver Twist"),
sobre quem não se pode dizer que
tenha muito de shakespeariano.
Fagin é um exemplo maravilhoso
do grotesco, mas não se agitam
nele os ventos da vontade, enquanto em Shylock eles continuam soprando infernalmente e
para sempre.
Era T.S. Eliot quem dizia que "as
personagens de Dickens são verdadeiras porque nunca houve no
mundo ninguém igual a elas". Isto não soa inteiramente certo: elas
são verdadeiras porque não há
uma que seja igual a outra, embora às vezes tenham mais de nós do
que delas mesmas. Talvez seja o
acaso que a vontade humana só
permita variações de grau, não de
gênero. O segredo de Dickens, então, parece ser o de uma diferença
de "tipos da vontade" entre seus
heróis, heroínas, vilões, excêntricos e coadjuvantes. Uma vez que
isso não parece possível para nós,
seres humanos, o efeito resultante
em seus romances é o de uma ausência de realidade.
É um preço alto a pagar, mas
ainda é bem menos que tudo, e
Dickens acabou levando mais do
que a encomenda. Nós também
recebemos muito mais do que o
que se dá em troca, quando lemos
Dickens. Essa talvez seja, de fato,
sua característica mais shakespeariana e, quem sabe, também a
imagem analítica que estávamos
procurando. Henry James e
Proust nos fazem sofrer muito
mais do que ele e esse sofrimento é
o próprio sentido, ou boa parte do
sentido, do que escrevem. Já o que
nos machuca em Dickens nunca
tem muito a ver com o significado,
porque não se pode ter uma poética da dor onde a vontade deixou
de ser compartilhada, ou é tristemente homogênea.
O que ele nos dá é uma poética
do prazer, o que com certeza vale
o desconforto secundário que cada um de nós experimenta diante
da sua recusa em nos oferecer uma
representação mais acurada da
vontade humana. Ele está sempre
escrevendo o livro dos instintos, o
que explica, aliás, o fracasso tedioso das leituras freudianas de Dickens. A metáfora conceitual sugerida por suas representações de
caráter e personalidade não é nem
o "espelho" shakespeariano,
nem a "lamparina" romântica,
nem o carnaval de Rabelais, nem o
campo aberto de Fielding. "Fogo
de palco" é perfeito, porque "palco" abstrai alguma coisa da realidade da vontade, mas o substantivo permanece sendo "fogo". Dickens é o poeta do fogo dos instintos, o verdadeiro sacerdote do mito freudiano dos conceitos limítrofes, daquele domínio que fica
na fronteira entre a psique e o corpo: uma queda na matéria, sem
perder a realidade de um e outro.
Harold Bloom é crítico literário e professor nas
universidades de Yale e Nova York. Publicou "A
Angústia da Influência" (Imago) e "O Cânone
Ocidental" (Objetiva), entre outros. Escreve
mensalmente.
Tradução de Arthur Nestrovski.
Sai 'Grandes Esperanças'
da Redação
Aproveitando a estréia do
filme no Brasil, está sendo
relançado o romance
"Grandes Esperanças"
(382 págs., R$ 22,00), de
Charles Dickens, pela
Ediouro (caixa postal 1.880,
CEP 20001-970, RJ).
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