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Ilustrissima

Cr�tica

O lado escuro de Get�lio

Cesarismo camale�nico fez do l�der popular um ditador

RESUMO Segunda parte da biografia de Get�lio Vargas aborda seu lado "ruim", concentrando-se nos anos que levaram � ditadura do Estado Novo. Apesar de certo tom oficialesco, livro se destaca pela narrativa da Revolu��o de 32 e da Intentona Comunista e ajuda a desfazer manique�smo ing�nuo em torno da figura do l�der.

OTAVIO FRIAS FILHO

ASSIM COMO o colesterol, pode-se dizer que existe um Get�lio Vargas "bom" e outro "ruim". O primeiro � o l�der de uma revolu��o democr�tica, o campe�o dos direitos sociais, o governante nacionalista. O segundo � o chefe da �nica ditadura pessoal que o Brasil conheceu e o pol�tico inescrupuloso aferrado ao exerc�cio do poder.

Claro que esse manique�smo ing�nuo se desfaz conforme conhecemos mais sobre personalidade t�o amb�gua e sua complexa inser��o numa �poca conflagrada como os meados do s�culo passado. Fomentar essa compreens�o isenta � o maior m�rito da biografia em tr�s volumes empreendida pelo jornalista e pesquisador Lira Neto, da qual se publica agora a segunda parte, "Get�lio - Do Governo Provis�rio � Ditadura do Estado Novo (1930-1945)" [Companhia das Letras, 632 p�gs., R$ 52,50].

Nela se concentra o Get�lio "ruim", o equilibrista ardiloso que sobrenada em meio �s tormentas ideol�gicas da d�cada de 1930, jogando uns contra outros, sempre aliado ao advers�rio da v�spera --chefe do governo provis�rio (1930), presidente eleito pela Constituinte (1934) e enfim ditador a partir de 1937.

� natural que o protagonista comande o espet�culo numa biografia; mesmo no caso de figura decisiva como Vargas, por�m, � fascinante o grau em que sua trajet�ria foi antes comandada pelas circunst�ncias. Mestre da paci�ncia e do sil�ncio, ele esperava que se consolidassem � medida que tratava de se amoldar a elas.

N�o eram apenas circunst�ncias locais, pois os anos 1930 ilustram com n�tida evid�ncia que n�o existe o "nacional", no sentido de que ele � sempre uma variante particular de fen�menos mais amplos, de dimens�o internacional.

Impulsionada pela cat�strofe da crise econ�mica de 1929, por toda parte a revolu��o social parecia iminente. Sua ponta de lan�a eram os partidos comunistas, organizados sob disciplina militar e obedientes � Uni�o Sovi�tica.

O fascismo foi, como se sabe, uma defec��o nacionalista e racista desse movimento revolucion�rio, logo apropriada pelos setores interessados em preservar a propriedade e a hierarquia amea�adas. Desde os anos 1920, hordas de fan�ticos das duas seitas --opostas nos prop�sitos, iguais em m�todo e est�tica-- se enfrentavam em arrua�as nas principais cidades do mundo.

Quando duas for�as pol�ticas se empenham num confronto violento e prolongado sem que nenhuma submeta a outra, torna-se prov�vel um desenlace cesarista (tamb�m chamado bonapartista). Incapaz de um compromisso est�vel, exaurida pelas lutas intermin�veis, a sociedade v� um ditador enfeixar o poder absoluto para restabelecer a ordem periclitante, ainda que sob uma ret�rica revolucion�ria.

Nada muito diverso ocorreu no Brasil da �poca. Mas a compara��o � instrutiva porque permite isolar, quase como num experimento qu�mico, as peculiaridades que distinguem o cesarismo tupiniquim, getuliano, do padr�o mais geral.

A mais not�vel, talvez, � seu car�ter camale�nico. Embora formado no positivismo autorit�rio e reformista que fez longa escola na pol�tica ga�cha, Get�lio nunca aderiu a qualquer doutrina ideol�gica. Conforme as conveni�ncias, manipulava este ou aquele aspecto de todas elas, reivindicando para si o centro de gravidade da pol�tica, afastado de ambos os extremos.

Caracter�stica psicol�gica da personagem? Certamente. Mas tamb�m sintoma de uma sociedade onde ideologias t�m fun��o decorativa, na qual as ideias n�o s�o levadas ao p� da letra nem sequer a s�rio, em que programas e compromissos s�o "para ingl�s ver".

Esse tra�o cultural do pa�s responde por mazelas (sucessivas constitui��es, leis e or�amentos que n�o se respeitam, partidos de araque, pol�tica inaut�ntica) e tamb�m por subprodutos benfazejos (aus�ncia de racismo politicamente articulado, toler�ncia religiosa e sexual, descren�a em rela��o a dogmas).

Tortura e assassinatos pol�ticos faziam parte da rotina da repress�o policial, sobretudo ap�s o golpe do Estado Novo, em 1937. N�o podem ser quantificados porque os registros foram destru�dos a tempo, mas as revoltas armadas do per�odo deixaram um saldo reduzido de baixas.

Foram 22 mortos na Intentona Comunista (1935); ainda menos na tentativa de golpe integralista (pat�tica vers�o nativa do fascismo) em 1938. Mesmo a Revolu��o Constitucionalista de 1932, o maior conflito armado na hist�ria republicana depois das sangrentas campanhas de Canudos e do Contestado, deixou menos de mil mortos.

Esse c�mputo integra um padr�o reiterado na forma��o brasileira, uma sociedade mais violenta do que a maioria das demais, desde logo pela extensa deforma��o da escravatura, mas onde a viol�ncia encontra escassa express�o pol�tica.

Cada um � livre para especular sobre esse enigma nacional. Resultado da profunda desarticula��o social que � pr�pria do legado escravocrata? H�bito adquirido da concilia��o, dos acertos "pelo alto", a fim de n�o despertar o vulc�o adormecido da desigualdade? Anemia da sociedade civil, o que deixa as for�as pol�ticas quase sempre � merc� do bloco que controla o hipertrofiado poder central? Porosidade � ascens�o individual, que impede a press�o coletiva de atingir um ponto cr�tico?

PROTESTOS Na opini�o deste resenhista, dois epis�dios se destacam na narrativa de Lira Neto. O primeiro � a Revolu��o de 1932, a come�ar pela extraordin�ria descri��o do incidente --os protestos de 23 de maio nas ruas em S�o Paulo-- que a prenunciou. Ainda que o livro nunca abandone a perspectiva da personagem incrustada no Pal�cio do Catete, seu relato transmite a sensa��o de que a revolta se desenrola diante de nossos olhos.

Fica patente o quanto havia de reacion�rio no movimento, que mobilizava um sentimentalismo nost�lgico da supremacia pol�tica paulista. Ao mesmo tempo, deflagrada pela elite econ�mica e cultural, a insurrei��o teve substancial apoio popular e conduziu � breve democratiza��o de 1934, que adiou a ditadura.

Esta seria inevit�vel em decorr�ncia do outro epis�dio proeminente, o infausto levante militar organizado no ano seguinte pelo Partido Comunista. Por volta de julho de 1935, Josef St�lin, o ditador sovi�tico, finalmente atinou que o nazifascismo era a amea�a priorit�ria. Os partidos comunistas, at� ent�o instru�dos a incitar a revolu��o armada, passaram a adotar uma pol�tica defensiva de frente ampla com as demais for�as antifascistas. No Brasil, o golpe em prepara��o n�o foi abortado, em parte por causa das estimativas delirantes sobre a chance de vit�ria que seu l�der, Lu�s Carlos Prestes, repassava a Moscou.

Detonada em novembro no Recife e em Natal, e dias depois no Rio, a intentona foi facilmente estrangulada pelo governo. Concebida por uma pot�ncia estrangeira, converteu-se no fantasma a ser invocado como eterno pretexto pelas duas ditaduras do s�culo, a de 1937 e a de 1964. Foi o maior dos muitos erros de Prestes, tido por militar capaz, mas politicamente obtuso.

Seu fracasso aproximou perigosamente o Brasil do Eixo, tend�ncia revertida para um tardio realinhamento com os Estados Unidos que s� seria consumado em 1942, quando aquele pa�s compeliu o nosso a ceder bases a�reas no Nordeste como apoio log�stico para a campanha no Atl�ntico. Na barganha, Get�lio obteve dos americanos financiamento para a primeira sider�rgica, Volta Redonda.

Premido por manifesta��es populares, provocadas pelo afundamento de navios brasileiros que violavam o bloqueio naval imposto pela Alemanha � Inglaterra, o governo enviou uma for�a expedicion�ria � guerra na It�lia. O engajamento com as pot�ncias democr�ticas desencadeou a din�mica que levaria os militares � primeira deposi��o de Get�lio Vargas (1945).

Como saldo, o Estado Novo deixava um aparelho federal modernizado, uma legisla��o trabalhista que renderia ao getulismo dividendos eleitorais por muitos anos e incipientes processos de industrializa��o e urbaniza��o que se fariam avassaladores nas d�cadas seguintes.

N�o faltam amenidades ao livro. Desde o apre�o de Get�lio Vargas por pontualidade, churrasco, cavalos, charutos, golfe e pingue-pongue at� detalhes de sua estreita rela��o com a filha Alzira, confidente e secret�ria particular que organizou os arquivos do pai, esta biografia n�o perde o fio do pitoresco, do �ntimo e do prosaico. O antiquado romance com a mulher de um hierarca do regime --a "bem-amada" que aparece nos di�rios secretos do presidente-- � contado em tom picante.

Duas ressalvas num livro de resto admir�vel. A pouca familiaridade do bi�grafo com temas econ�micos deixa lacunosa essa importante faceta na atua��o do ditador.

E as principais fontes do livro --as recorda��es filtradas pela devo��o de Alzira Vargas e os di�rios mantidos pelo pai (1930-42), que mesmo ali ostenta a compostura protocolar de quem calcula sua revela��o p�stera-- �s vezes conferem uma tonalidade oficialesca ao conjunto, que n�o deixa de refletir, entretanto, o pesado clima cartorial da �poca.

Na segunda parte da biografia de Vargas, se concentra o Get�lio "ruim", o equilibrista ardiloso que sobrenada em meio �s tormentas ideol�gicas da d�cada de 1930

No livro, fica patente o quanto havia de reacion�rio no movimento de 1932, que mobilizava um sentimentalismo nost�lgico da supremacia pol�tica paulista

Get�lio nunca aderiu a qualquer doutrina ideol�gica. Conforme as conveni�ncias, manipulava este ou aquele aspecto de todas elas, afastado de ambos os extremos


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