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Jo�o Pereira Coutinho

Hobbes na Bahia

A aus�ncia do Estado, esse velho sonho de anarquistas, pode jogar-nos de volta para uma selva de medo?

Sazonalmente, o Brasil arru�na-me. Acontece quando a desordem se instala nas ruas do pa�s e eu passo horas ao telefone a falar com amigos ou colegas sitiados em suas casas. Anos atr�s, quando o Primeiro Comando da Capital tomou literalmente conta de S�o Paulo, minha conta de telefone furou a estratosfera.

O mesmo sucedeu agora com a greve policial na Bahia, que permitiu o velho cortejo de crimes e pilhagens que fazem parte do circo. Telefonei, confirmei. Todos os meus amigos est�o bem, obrigado.

Eu � que n�o estou: primeiro, j� pensei seriamente em enviar a conta do telefone para os grevistas do Estado. Eles que paguem a despesa dos meus cuidados.

E, depois, porque sou obrigado a concordar com Thomas Hobbes (1588-1679), um fil�sofo pol�tico ingl�s com quem mantinha uma rela��o de amor e �dio. N�o mais.

O �dio era compreens�vel: sempre que lia "Leviat�" (1651), a minha costela libert�ria tremia um pouco. N�o que tenha uma vis�o otimista sobre a natureza humana.

Deus me livre e guarde. Essa, curiosamente, � a minha principal disc�rdia com os libert�rios puros e duros: eles t�m uma insensibilidade ao "problema do mal" que os remete para companhias ideol�gicas pouco recomend�veis.

Mas, apesar de tudo, a ideia

hobbesiana de um poder soberano indivis�vel e indiscut�vel, que exige uma submiss�o quase total dos seus s�ditos, sempre me pareceu a receita perfeita para a tirania.

Como � evidente, leituras apressadas geram conclus�es apressadas. � poss�vel ler Hobbes com umas lentes ligeiramente mais "liberais".

Para come�ar, entender a vida de Hobbes � entender parte da sua filosofia pol�tica: nascido em Londres, ele testemunhou a Guerra Civil Inglesa que levou � execu��o do rei Charles 1�. N�o admira que a paz, a seguran�a e a ordem tenham sido suas preocupa��es permanentes.

Ali�s, n�o apenas dele: partindo da sua experi�ncia pessoal -ou, melhor dizendo, das suas "sensa��es" pessoais-, Hobbes chegou rapidamente � conclus�o de que a primeira paix�o dos homens � a mais l�gubre de todas: temos medo da morte. O que significa que a preserva��o da vida deve ser a base de qualquer "contrato social".

No "estado de natureza", a vida � "solit�ria, pobre, s�rdida, brutal e curta". N�o porque exista uma malignidade metaf�sica na alma da ra�a; mas porque, muitas vezes, a minha paz exige um estado permanente de guerra. Eu mato para n�o ser morto. Eu roubo para n�o ser roubado. Etc.

O Estado � esse agente supremo que os indiv�duos resolvem dar a si pr�prios para protegerem a sua vida e, nos casos em que a lei � omissa, a sua pr�pria liberdade.

� o Estado -a for�a do Estado- que modera as vaidades, as ambi��es e os orgulhos dos homens; � ele quem garante esse m�nimo de ordem sem o qual a liberdade natural dos indiv�duos tem pouco ou nenhum valor substancial.

Hobbes est� certo: quando olhamos para zonas de conflito no mundo, podemos debater as causas econ�micas e sociais que explicam os mortic�nios; ou podemos, no caso brasileiro, discutir a duvidosa legalidade das greves policiais ou os falhan�os da pol�tica nacional de seguran�a p�blica.

Mas existe uma discuss�o pr�via que nos remete para Thomas

Hobbes: poder� existir vida em sociedade sem que o Estado detenha o "monop�lio da viol�ncia" (express�o do soci�logo Max Weber) de forma a impedir a metastiza��o da viol�ncia pela sociedade?

Ou, pelo contr�rio, a aus�ncia do Estado, esse velho sonho de anarquistas e libert�rios, pode jogar-nos de volta para uma selva de medo e abuso?

A resposta de Hobbes � clara: sem Estado, a selva � o nosso destino. E, se � verdade que o Estado foi, muitas vezes, um agente de viol�ncia ileg�tima e desumana sobre os cidad�os, n�o era esse o Estado que

Thomas Hobbes pretendia.

Lendo os seus textos, encontramos os instrumentos b�sicos para pensar um Estado democr�tico, leg�timo, defensor da vida humana -e, pormenor fundamental, respeitador da intimidade dos indiv�duos.

Desprezar Hobbes s� � poss�vel por deficit de conhecimento e excesso de seguran�a. Mea-culpa.

jpcoutinho@folha.com.br

AMANH� NA ILUSTRADA:
Marcelo Coelho

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