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Ilustrada

Contardo Calligaris

A vida como ela � (ou n�o)

Melhor desconfiar da banalidade; talvez ela seja o disfarce que permite ao horror passear entre n�s

Durante o fim de semana, assisti a "O Protetor", de Antoine Fuqua, com Denzel Washington.

Imaginava que n�o fosse nenhuma obra-prima, e de fato n�o �. Mas, para um p�blico numeroso (do qual fa�o parte), o que se sabe da hist�ria pelo trailer torna o filme irresist�vel.

Robert McCall vive a rotina um pouco aflitiva de um solit�rio que trabalha como vendedor num supermercado de materiais de constru��o e passa as noites lendo cl�ssicos num caf� 24 horas, ao lado da sua casa. Fora essa pequena excentricidade, ele � o retrato da mesmice: sua vida parece se justificar na simples repeti��o ordeira.

De repente, McCall encontra uma mocinha muito injusti�ada e n�o consegue (mais) ficar de espectador. Claro, aprendemos nessa ocasi�o que McCall tem um passado "animado" (e certamente sofrido); � desse passado que ele est� se escondendo na rotina de seus dias.

Quando McCall sai de sua tranquila aposentadoria entendemos um sentido e um charme diferentes da famosa frase "voc� n�o sabe com quem est� falando": a amea�a n�o se refere apenas (estupidamente) a algum privil�gio social, mas � um jeito de dizer que podemos ser bem diferentes do que aparentamos ser.

Lembre-se do Hulk: "Voc� n�o quer me ver irritado"�". E lembre-se de Glenn Ford em "The Fastest Gun Alive", o cl�ssico de Russell Rouse de 1956 (trad. "Gatilho Rel�mpago"--mamma mia!), em que um grande pistoleiro se torna comerciante de secos e molhados at� que"�etc.

Nosso pensamento moral � livre como nunca foi: cada um pode decidir o que �, para ele, certo ou errado, sem obedecer necessariamente ao que mandam o figurino, a lei e os costumes da cidade e dos tempos. A liberdade moral moderna entra facilmente em conflito com a administra��o p�blica da justi�a, que pode ser corrupta, pregui�osa e mesmo injusta.

Esse conflito, que todos vivemos um dia, resolve-se na figura do justiceiro, que age segundo suas convic��es morais, sem esperar que a lei institu�da saia de sua letargia.

Nota: n�o pense que o justiceiro seja uma inven��o de Hollywood. Ele existe desde os come�os da liberdade moral na nossa cultura: Robin Hood � uma lenda do s�culo 13.

Enfim, as v�timas, em geral, est�o ou deveriam estar sempre a favor do justiceiro e contra o legalismo um pouco covarde de quem nunca coloca as m�os na massa. Se voc� estiver em apuros na S�ria ou no Iraque de hoje, voc� vai contar com os bombardeios dos aliados ocidentais e rezar para que nunca o Brasil consiga um assento permanente no Conselho de Seguran�a da ONU.

Mas o que mais me seduz em "O Protetor" e narrativas an�logas n�o � tanto o charme do justiceiro quanto o sonho de uma virada, de uma decis�o ou de um gesto que, de repente, tornem o cotidiano extraordin�rio e atribuam � nossa vida comum a intensidade de uma fic��o.

No filme, um detalhe narrativo salienta essa possibilidade de transformar o cotidiano numa �pica: claro, se o inimigo vem com uma arma, McCall pode vir�-la contra ele, mas, em geral, ele s� combate com objetos de todos os dias, do saca-rolha � broca el�trica.

O segredo de uma vida que valha a pena consiste em viver nosso cotidiano como uma aventura. Para isso, n�o � preciso matar mafiosos e salvar donzelas (at� porque, �s vezes, n�o h� donzelas, embora os mafiosos estejam em toda parte).

Em suma, o cotidiano n�o exige nosso hero�smo (ou super-hero�smo) para mostrar uma face menos trivial e mais intensa. S� que, cuidado: nem sempre essa outra face � divertida. No fim de semana, tamb�m assisti a "Miss Violence", de Alexandros Avranas, que � uma obra-prima, imperd�vel (aten��o: n�o � para crian�as, e n�o � o caso de levar sua filha de 14 anos sob pretexto de que ela � madura).

"Miss Violence" nos leva para o cotidiano de uma fam�lia aparentemente muito "normal", mas na qual, desde o come�o, um acidente nos sugere que nem tudo o que brilha � ouro. Nenhum spoiler: � preciso que a descoberta do sinistro e do horror seja lenta, gradual.

S� algumas conclus�es:

1) O cotidiano aparentemente insosso (o nosso ou o do nosso vizinho) pode se transformar em conto de fadas, mas pode tamb�m revelar um romance de horror, escondido ou envergonhado.

2) Melhor desconfiar da banalidade e n�o perdo�-la por ela ser comum; pois a banalidade � um disfarce que permite ao horror passear entre n�s (para entender como, basta escutar ou ler as palavras de Levy Fidelix no �ltimo debate da Record).


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