São Paulo, Sexta-feira, 27 de Agosto de 1999
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CARLOS HEITOR CONY
Grande cena de teatro com vaso misterioso

Vieram de longe, estudar qualquer coisa no Rio, e procuraram se enturmar com aquilo que eles, na província, julgavam o máximo. Com as mesadas paternas conseguiram alugar um quarto-e-sala em Botafogo, em cima do cinema Ópera. A faculdade não era longe, na Praia Vermelha.
Tinham um McDonald's perto, diversas lanchonetes com empadas sinistras, mas pizzas razoáveis, uma loja que vendia caldo-de-cana e pastéis cheios de vento e gordura. Por tudo isso, do cinema aos pastéis, consideravam-se bem instalados e tentaram aproveitar a proximidade das cultas gentes que, na distante cidade mineira, eles consideravam a pedra angular da cultura, da arte e da civilização que invadiria o próximo milênio.
Faziam progressos, já sabiam de quem deviam gostar (Caetano, Gil, Chico Buarque, Milton etc.) e quem deviam desprezar (Roberto Carlos, Chitãozinho e Xororó, Ana Maria Braga, Ratinho etc.). Foram alertados previamente para que ficassem de antenas ligadas, volta e meia, sem que ninguém soubesse como ou por que, um desses caras mudava de nicho e era preciso uma vigilância diurna, e sobretudo noturna, para não perderem o status de estarem por dentro.
E eles iam na onda, topavam com boa vontade idéias e gostos que eram decretados ninguém sabia por quem nem para quê. Só resistiam à fascinação do teatro, a que eles não estavam habituados: na cidadezinha deles não havia disso. Num esforço para se colocarem em dia, bateram os teatrinhos de nus e cenas de sexo, tentando adquirir laboratório para enfrentar, mais tarde, o teatro sério, onde havia uma peça de vanguarda que os gurus do Baixo Gávea proclamavam como a mais importante desde a morte de Sófocles.
Após semanas de resistência, e verificando que a peça funcionava como um divisor de águas na teledramaturgia universal e na história dos povos, decidiram enfrentar o ato único que levava três horas para terminar. Essa estranha divisão do tempo cênico era um dos pilares da peça. Mesmo assim, para irem prevenidos, trataram de ler tudo o que os segundos cadernos da vida publicaram a respeito. Passaram noites ouvindo os iluminados que já tinham visto a maravilha diversas vezes. A cada sessão, eles descobriam novos significados e impactantes propostas, propostas que ali, no Baixo Gávea, ganhavam o apelido de ""colocações".
Chegou afinal o grande dia, quer dizer, noite, e foram os dois ao teatro. Almoçaram pouco, comidas naturais para não poluir os neurônios com alimentos industrializados que reduziriam a acuidade intelectual. Queriam estar em absoluta pureza mental e corporal para melhor absorver a formidável Revelação, que um crítico de nomeada considerou mais do que Revelação, mas Epifania.
Verdade que acharam tudo intrigante, pós-moderno, um clima que vou te contar. O cenário era todo de cortinas pretas, num dos cantos havia uma pequena mesa de ferro, dessas de hospital, e em cima da mesa um vaso branco, que nas duas primeiras horas do espetáculo nada tivera a fazer ali, pois nada acontecera nele, com ele ou por causa dele. Mas o cenógrafo tinha no currículo dois Molières, um Sharp e uma menção honrosa num festival de teatro em Karlovy Vary, na Tcheco-Eslováquia.
O diabo é que nada acontecia, não apenas com o vaso, mas com o palco todo, incluindo atores. De dez em dez minutos aparecia um sujeito em cena e dizia coisas desconexas em voz gritada. O negócio parecia engatar quando um cara ameaçou sodomizar um outro, mas surgiu um velho barbado que pronunciou um anátema contra o FMI. A cena da sodomia ficou ameaçada para mais tarde.
Os dois rapazes nada entendiam, apesar de muito se esforçarem para. Um deles estava apertado, perguntou ao colega se sabia onde era o banheiro. O teatro estava todo escuro, palco, platéia, corredores, tudo. Um fiapo de luz branca caía como a luz do luar em cima do vaso, que continuava, inútil e inexplicável, em cima da mesa, no canto mais escondido da cena.
O sujeito procurou se orientar na escuridão. Naquele instante, como em todos os demais instantes da peça, nada estava acontecendo no palco. A proposta do autor chamava aquele ""nada" de ""ângulo morto do processo sistêmico do capitalismo".
De repente, após atravessar o comprido corredor em total escuridão, ele viu uma jarra em cima de uma mesa abandonada. Não havia ninguém perto. Estava salvo. Urinou no vaso, calmamente, dando as três pancadinhas regulamentares, e tratou de voltar à platéia, para saber como estavam as coisas no palco. Sentou-se ao lado do companheiro e perguntou: ""E aí? Aconteceu alguma coisa importante?"
O companheiro estava com a cara devastada pela emoção: ""Agora mesmo é que não estou entendendo mais nada! Um filho da puta apareceu ali naquele canto, urinou dentro do vaso e foi embora".


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