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CARLOS HEITOR CONY
Grande cena de teatro com vaso misterioso
Vieram de longe, estudar qualquer coisa no Rio, e procuraram
se enturmar com aquilo que eles,
na província, julgavam o máximo. Com as mesadas paternas
conseguiram alugar um quarto-e-sala em Botafogo, em cima do cinema Ópera. A faculdade não era
longe, na Praia Vermelha.
Tinham um McDonald's perto,
diversas lanchonetes com empadas sinistras, mas pizzas razoáveis, uma loja que vendia caldo-de-cana e pastéis cheios de vento e
gordura. Por tudo isso, do cinema
aos pastéis, consideravam-se bem
instalados e tentaram aproveitar
a proximidade das cultas gentes
que, na distante cidade mineira,
eles consideravam a pedra angular da cultura, da arte e da civilização que invadiria o próximo
milênio.
Faziam progressos, já sabiam de
quem deviam gostar (Caetano,
Gil, Chico Buarque, Milton etc.) e
quem deviam desprezar (Roberto
Carlos, Chitãozinho e Xororó,
Ana Maria Braga, Ratinho etc.).
Foram alertados previamente para que ficassem de antenas ligadas, volta e meia, sem que ninguém soubesse como ou por que,
um desses caras mudava de nicho
e era preciso uma vigilância diurna, e sobretudo noturna, para
não perderem o status de estarem
por dentro.
E eles iam na onda, topavam
com boa vontade idéias e gostos
que eram decretados ninguém sabia por quem nem para quê. Só
resistiam à fascinação do teatro, a
que eles não estavam habituados:
na cidadezinha deles não havia
disso. Num esforço para se colocarem em dia, bateram os teatrinhos de nus e cenas de sexo, tentando adquirir laboratório para
enfrentar, mais tarde, o teatro sério, onde havia uma peça de vanguarda que os gurus do Baixo Gávea proclamavam como a mais
importante desde a morte de Sófocles.
Após semanas de resistência, e
verificando que a peça funcionava como um divisor de águas na
teledramaturgia universal e na
história dos povos, decidiram enfrentar o ato único que levava três
horas para terminar. Essa estranha divisão do tempo cênico era
um dos pilares da peça. Mesmo
assim, para irem prevenidos, trataram de ler tudo o que os segundos cadernos da vida publicaram
a respeito. Passaram noites ouvindo os iluminados que já tinham
visto a maravilha diversas vezes.
A cada sessão, eles descobriam
novos significados e impactantes
propostas, propostas que ali, no
Baixo Gávea, ganhavam o apelido de ""colocações".
Chegou afinal o grande dia,
quer dizer, noite, e foram os dois
ao teatro. Almoçaram pouco, comidas naturais para não poluir os
neurônios com alimentos industrializados que reduziriam a
acuidade intelectual. Queriam estar em absoluta pureza mental e
corporal para melhor absorver a
formidável Revelação, que um
crítico de nomeada considerou
mais do que Revelação, mas Epifania.
Verdade que acharam tudo intrigante, pós-moderno, um clima
que vou te contar. O cenário era
todo de cortinas pretas, num dos
cantos havia uma pequena mesa
de ferro, dessas de hospital, e em
cima da mesa um vaso branco,
que nas duas primeiras horas do
espetáculo nada tivera a fazer ali,
pois nada acontecera nele, com
ele ou por causa dele. Mas o cenógrafo tinha no currículo dois Molières, um Sharp e uma menção
honrosa num festival de teatro em
Karlovy Vary, na Tcheco-Eslováquia.
O diabo é que nada acontecia,
não apenas com o vaso, mas com
o palco todo, incluindo atores. De
dez em dez minutos aparecia um
sujeito em cena e dizia coisas desconexas em voz gritada. O negócio parecia engatar quando um
cara ameaçou sodomizar um outro, mas surgiu um velho barbado
que pronunciou um anátema
contra o FMI. A cena da sodomia
ficou ameaçada para mais tarde.
Os dois rapazes nada entendiam, apesar de muito se esforçarem para. Um deles estava apertado, perguntou ao colega se sabia
onde era o banheiro. O teatro estava todo escuro, palco, platéia,
corredores, tudo. Um fiapo de luz
branca caía como a luz do luar
em cima do vaso, que continuava,
inútil e inexplicável, em cima da
mesa, no canto mais escondido da
cena.
O sujeito procurou se orientar
na escuridão. Naquele instante,
como em todos os demais instantes da peça, nada estava acontecendo no palco. A proposta do autor chamava aquele ""nada" de
""ângulo morto do processo sistêmico do capitalismo".
De repente, após atravessar o
comprido corredor em total escuridão, ele viu uma jarra em cima
de uma mesa abandonada. Não
havia ninguém perto. Estava salvo. Urinou no vaso, calmamente,
dando as três pancadinhas regulamentares, e tratou de voltar à
platéia, para saber como estavam
as coisas no palco. Sentou-se ao
lado do companheiro e perguntou: ""E aí? Aconteceu alguma coisa importante?"
O companheiro estava com a
cara devastada pela emoção:
""Agora mesmo é que não estou
entendendo mais nada! Um filho
da puta apareceu ali naquele canto, urinou dentro do vaso e foi embora".
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