São Paulo, Sexta-feira, 27 de Agosto de 1999
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Sonhos tecendo a vida real

"A Vida Sonhada dos Anjos", primeiro longa do cineasta francês Erick Zonca consagra diretor e elenco e estréia hoje em São Paulo


BERNARDO CARVALHO
Colunista da Folha

Erick Zonca, 42, é hoje praticamente uma unanimidade. Depois de três curtas-metragens, seu primeiro longa, "A Vida Sonhada dos Anjos" (1998), ganhou o prêmio de melhor atriz em Cannes (dividido entre Elodie Bouchez e Natacha Régnier) e foi recebido com todos os louros na França e nos Estados Unidos.
Zonca não é o modelo de cineasta francês. Não se pode dizer que seja um homem teórico. Nascido num meio pequeno-burguês do interior, com uma formação muito pouco cultural e fascinado pelo cinema americano, saiu de casa cedo e foi para Nova York, onde se matriculou num curso para atores. Ao voltar para a França, começou a trabalhar como estagiário de cinema e acabou consagrado com "A Vida Sonhada dos Anjos".
Seu próximo filme (para TV) irá ao ar no início do ano que vem. Chama-se "Le Petit Voleur" (O Ladrãozinho) e se passa em Marselha. Hoje, Zonca trabalha em Paris no roteiro de um novo projeto: "É ainda um rascunho. São só premissas", diz. Leia, a seguir, a entrevista que Zonca deu à Folha, por telefone, na semana passada.

Folha - Você já disse que não foi influenciado pelo cinema francês mas que, antes, sofreu uma atração do cinema americano.
Erick Zonca -
Isso foi há 20 anos. Gosto do cinema americano de autor: Scorsese, Coppola, Cassavetes, Abel Ferrara. Mas fui muito influenciado pelo cinema francês, por Godard, Pialat, Truffaut, a nouvelle vague. Estava pensando em Pialat quando fiz "A Vida Sonhada dos Anjos".

Folha - O que você via no cinema americano há 20 anos que não existia no cinema francês?
Zonca -
Eram aventuras que se ligavam ao real. Havia as duas coisas ao mesmo tempo, um cinema que fazia você descobrir a ficção, só que muito colada ao real.

Folha - Mas o seu filme não tem nada a ver com o cinema americano. Há inclusive uma cena em que as duas protagonistas fazem um teste para garçonete e imitam Madonna e Lauren Bacall. Não há aí uma ironia melancólica em relação à cultura pop americana?
Zonca -
Não. É antes em relação ao comércio que se faz a partir da cultura americana na Europa, nos supermercados, nos bares, nos restaurantes. É inevitável o fascínio pela cultura americana, mas ao mesmo tempo é irritante, ela nos encobre completamente.

Folha - O cinema francês poderia sobreviver diante da ameaça americana sem o auxílio do Estado?
Zonca -
Sem os recursos do Estado não daria para fazer cinema na França. O jovem cinema francês não tem espectadores suficientes para fazer face ao cinema americano. Talvez essa situação mude com os canais de televisão.

Folha - No cinema americano recente há uma obsessão pela família, mesmo entre os independentes. No seu filme, ao contrário, as relações familiares são periféricas, quase inexistentes. Os personagens são nômades e solitários.
Zonca -
Queria falar de personagens separados de suas famílias. Duas garotas entregues a si mesmas no mundo de hoje. Elas apenas evocam suas famílias. Não queria sobrecarregar tudo com um contexto familiar. Queria falar das garotas. O interessante era não determiná-las pelos seus passados.

Folha - Você acha que pode haver mais verdade e intensidade nessa vida alternativa?
Zonca -
São apenas duas garotas marginais, sem pontos de referência ou contato. Queria mostrar como uma se vira em sua capacidade de reencontro com o mundo e como para a outra, que é mais fechada, as coisas são mais difíceis.

Folha - Você baseou os personagens em pessoas reais. É sempre assim que você trabalha?
Zonca -
É o que todos fazemos. Observamos o que se passa em volta. É assim que trabalham os escritores. Mesmo quando estamos totalmente na ficção. São personagens que encontramos na vida.

Folha - Você diz que nunca parte de um ponto de vista teórico. Foi isso que o afastou de uma certa tradição do cinema francês e o ligou ao cinema americano?
Zonca -
Houve outras razões. Quando eu era jovem, não tinha muita cultura. Conhecia mais o cinema americano, como todo espectador. Descobri o cinema francês nos Estados Unidos, quando estudava teatro em Nova York.

Folha - Que diferença você vê entre o que você faz e o que fazem os cineastas mais próximos dos "Cahiers du Cinéma", por exemplo?
Zonca -
Para mim é um pouco difícil dizer. Gosto de cineastas como Olivier Assayas. Acho que são bastante fortes. Já o que eles dizem é problema deles. Estou mais próximo de gente como Manuel Poirier. Gente que conta histórias.

Folha - Qual a sua opinião sobre o manifesto Dogma 95?
Zonca -
Eles estão se divertindo. Gostei dos dois primeiros filmes. Thomas Vinterberg é um sujeito muito talentoso. Seu próximo filme não tem nada a ver com "Festa de Família". O próximo filme de Lars Von Trier é uma comédia musical. Eles se divertem provocando o mundo dos críticos e dos jornalistas. Entre os cineastas, o Dogma não diz nada. Vemos os jornalistas e os críticos achando graça ou se irritando, mas o Dogma não representa nada para nós.


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