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GASTRONOMIA
Quem tem medo do McDonald's?
NINA HORTA
Colunista da Folha
O que é, o que é, o mais adorado
e detestado fast food do mundo?
Um cardápio limitado e padronizado que combina serviço rápido, limpeza e preço baixo. Pode
ter mudado hábitos de comer fora, mas não põe em perigo hábitos
de comer bem.
A criança que mastiga o hambúrguer pode e possivelmente está escapando de uma almôndega
pálida, cheia de pelotas de miolo
de pão amanhecido, em molho de
tomate de lata. Em casa.
Não morro de amores pelo
McDonald's porque não como
hambúrgueres -nem dos ótimos. Mas não tenho medo dele. Foi lá que introduzimos
nosso neto de 4 anos, que
nascera num regime natural, na perversão
americanizada. Levantou o copo com o
canudo dentro e nos
saudou com um tintim, como se fosse vinho ou champanhe.
Foi lá que perguntou de supetão
ao avô: "Você acredita em Papai
Noel? Eu acredito". A neta, uma
vez, chorou desabafadamente até
chegar em casa e nos castigou por
um tempo com sua ausência porque não deixamos que tirasse a
cebola de dentro do sanduíche.
Quem tem medo de fast food?
Este mesmo neto, hoje, percebe
nuances no arroz do sushi, dá palpites em fondues. A neta faz bolos
de chocolate, entende de ervas e
de queijos.
O McDonald's somos nós, a plebe, numa festa muito popular dos
anos 50, "come as you are". De
bermuda, pijama, saia curta ou
comprida, maiô, agasalho, tudo
vale. Nada, nada em matéria de
roupa ou sapato é estranho ao
McDonald's.
Muita criança, muito pai e muita mãe. Adolescentes espinhudos.
Bastante gente gorda. Pretos,
amarelos e brancos. Internos
do hospital mais próximo
de uniforme e estetoscópio. Empregados do supermercado ao lado. Namoradinhos apaixonados
sobre a Coca-Cola. Adultos de celular. E velhinhas
em penca. O único lugar do
Brasil onde se permite a entrada de velhinhas. Curvadas, passo curto, encantadas
com aquela última
migalha de vida
em que ainda podem participar,
de convivência,
de barulho, alegria. Babujam
na comida sem
que alguém repare, enlevam-se com as caixinhas tão vistosas, comem
com os modos que a velhice
lhes permite.
Quem come no McDonald's é um transparente.
Não tem nada a esconder. Cada um é único,
fortaleza íntegra diante do
padronizado. Eu sou assim,
minha família é assim, e daí?
As crianças pequenas têm largo
espaço para aprender a se comportar em público. Ficar na fila,
pagar, conferir troco, deixar a mesa limpa, destampar caixinhas,
abrir tubos, o que é feito considerável com a mostarda e o ketchup.
Num restaurante estrelado receberiam um sem-fim de beliscões fininhos e disfarçados a qualquer deslize e ainda teriam que
engolir o choro.
Numa sexta-feira de preguiça
sentaram-se ao nosso lado cinco
pessoas. Um casal moço, ele, mudo, ela tagarela a mais não poder,
o filho bem pequeno e os avós. O
avô abriu uma caixa de remédios
e retirou a bula, que leu com profunda seriedade durante toda a
refeição, mas quem me atraiu foi a
avó. Era destas senhoras fortes,
triangulares, muito ombro e bunda inexistente, com saia pelos joelhos, blusa curta por cima. Sentava-se puxando a saia com as duas
mãos, como num tique nervoso,
para que não lhe vissem os joelhos, as varizes ou suspeitassem
de sua seriedade. De vez em quando passava a mão avermelhada
pelos cabelos curtos e grisalhos.
Quando o hambúrguer chegou
ela puxou a saia mais uma vez, pegou o sanduíche e começou a comê-lo numa felicidade contida,
com o coração cantando baixo.
Atenta, muito atenta e feliz. Atrás
daquele ritmo vagaroso de comer
o pão, quase escondia o prazer daquele privilégio. Jantava fora.
Com aquela inocente escapada
evitara seis panelas sujas, o arroz
grudado no fundo de uma, 12 pratos, talheres, as sobras enchendo
os Tupperwares na geladeira
apertada. Um fogão engordurado, a pia meio entupida, a água
quente jogada no chão escorregadio, o rodo, o pano de chão, a indiferença distraída de todos. Este
é um dos motivos pelo qual me
agrada o McDonald's. O outro são
as batatinhas fritas com ketchup.
E-mail: ninahort@uol.com.br
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