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BIBLIOTECA FOLHA
Obra-prima perseguida do escritor Henry Miller chega amanhã às bancas
"Trópico de Câncer" quebra aura romanesca do amor
Divulgação
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O escritor Henry Miller, autor de "Trópico de Câncer", publicado em Paris em 1934 |
JOSÉ MARIA CANÇADO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Poucos escritores e poucas
obras no século 20 dispuseram, como Henry Miller (1891-1980), antagonismos e inimigos
tão inequívocos. Expressão dessa
legião são os inúmeros processos
e acusações de obscenidade movidos contra a sua obra por "cartéis
de cidadãos" (assim se autodenominavam e se constituíam juridicamente algumas dessas ligas),
com confisco de edições, condenação de editores e livreiros: este
"Trópico de Câncer", por exemplo, cuja primeira publicação é de
1934 (em Paris), só surgiu nos Estados Unidos em 1961, vendendo
então mais de 1,1 milhão de exemplares em um ano.
Mas os inimigos e o antagonismo suscitados e afrontados pelos
livros desse filho de imigrantes
alemães, nascido no Brooklin em
1891, uma divertida expressão
mongol nos olhos apertados, não
se resumem a essas ligas de moralidade.
Seu antagonismo era com a administração do espírito e da vida,
o "pesadelo refrigerado" (título
do seu livro de ensaios sobre a
América, de 1944, e que se tornaria uma expressão e uma tópica
da sua recusa do mundo administrado), com a dessublimação repressiva do eros e do sexo (tema
marcuseano de três décadas depois), com a retração da experiência.
Hoje, esses temas parecem ter
perdido, por assim dizer, a centralidade histórica, política e cultural
que tiveram. Certamente porque
os aspectos regressivos da dominação e as formas de controle,
planetarizadas e aparentemente
sem fissura, ganharam outros patamares e outro grau de violência.
Como se, recolhidos a pauta e o
ânimo libertário da segunda metade do século passado, que
Henry Miller prefigurou, não fosse tão mais discernível a força de
criação artística e literária desse
antagonismo ativo que ele chamou para si e viveu, à maneira de
uma crucificação muito pessoal e
encarnada ("The Rosy Crucifixion", crucificação encarnada, é o
título da sua trilogia americana,
formada por "Sexus", de 1949,
"Plexus", de 1953, e "Nexus", de
1960), e ele tivesse se tornado um
Walt Whitman não entre as folhas
da relva, mas "entre cadáveres",
como observou George Orwell,
que não gostava dele.
Mas não é o que se passa. Em especial nesse "Trópico de Câncer",
sua obra-prima (publicado pela
primeira vez no Brasil em 1963), e
que é o relato dos anos passados
pelo escritor em Paris, na década
de 30, trajetória contrapassante,
pois Henry Miller vai para a França quando a "geração perdida"
dos norte-americanos estava voltando para a América. É que a
moral literária e vivencial de
Henry Miller é feita de um assentimento e de uma exploração quase "despautadas" do "valor restaurativo da experiência, fonte
primária da sabedoria e da criação", como disse Anaïs Nin, que o
escritor conheceu na França em
1931 e se tornaria sua amante. É o
seu tema, que transborda dos embates históricos e culturais.
Para tanto, ele criou um padrão
seu. "Minha idéia de colaborar
comigo mesmo tem sido abandonar o padrão ouro da literatura",
escreveu em "Trópico de Câncer". Isso resultou na criação de
uma espécie de moral e de feição
pré-artísticas fundamentalmente
artísticas, exploratória e cabalmente artísticas. Algo análogo ao
que foi chamado de "cor psíquica", ou composição psíquica, em
Picasso, forma de resolução essencial da experiência. Queria
também saber o que aconteceria
se abandonássemos "o padrão
ouro do amor". "Trópico de Câncer" é o romance desse abandono,
da quebra da aura romanesca do
amor. E não em favor de um brutalismo sexista, mas na busca do
que ocorreria se tudo isso, que está envolvido "nesse negócio de foder" (referia-se assim ao assunto)
fosse visto com um "olho cosmológico" (título de um livro de ensaios de 1945). A mesma Anaïs
Nin testemunha, a esse respeito,
que tal não implicava, no caso de
Henry Miller, uma "tendência retrogressiva, mas um balanço para
a frente de áreas inexploradas".
É numa condição de quase
mendicância, e nesse regime meio
ctônico do sexo e do amor ("Se alguém soubesse o que significa ler
o enigma daquela coisa que hoje é
chamada "racha" ou "buraco", este
mundo se partiria ao meio"), que
o narrador vive nas ruas de uma
Paris "cujo encanto nenhum homem pode compreender até ser
obrigado a procurar refúgio nelas,
até ter-se tornado uma palha jogada para cá e para lá pelo próprio
zéfiro que sopra". É aí, entre as
inúmeras mulheres da sua vida
(um mundo no qual ele nunca
deixa de encontrar "o valor restaurativo" da experiência, mesmo
quando ele se vê atingido pelas figuras quase rupestres de dor, nascidas da perda de Mona, sua mulher americana), entre uma trupe
de conhecidos e de amigos que ele
pinta como personas dramáticas,
sempre no limiar de algo, que ele
prova a sua alma. E o faz, na sua
exacerbada dissidência histórica e
espiritual, convocando "a natureza do bode ou do titã".
O resultado é uma prosa na qual
o brutalismo da afronta e das invectivas contra o mundo compõe-se com imagens de uma beleza inaudita, a verdade psíquica e
figural da devastação mas também do êxtase e da ressurreição,
na qual a gramática incoerente e
meio dadá das digressões e da
narração ("eu sou o único dadaísta dos Estados Unidos e não sabia
disso", comentou) compõe-se
com o balanço daquelas "áreas
inexploradas", e a quebra do "padrão ouro" da literatura e dos sentimentos com a preparação e a
antevisão do que seria uma experiência verdadeiramente cósmica
de liberdade, e de criação artística.
José Maria Cançado é autor de "Memórias Videntes do Brasil - A Obra de Pedro Nava", que deverá ser publicada pela
editora da Universidade Federal de Minas Gerais, e de "Os Sapatos de Orfeu"
(ed. Scritta), sobre Carlos Drummond de
Andrade
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