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FERREIRA GULLAR
Quem não se arma não mata
Caro leitor, cara leitora,
amigos meus, não sei qual
será o voto de vocês no referendo
de hoje. Confio que não seja a favor da venda de armas de fogo e
munições. Mas se for... De qualquer modo, peço que cada um de
vocês pare para pensar o que implica esse voto: armas e munições
servem para matar. Num mundo
violento como este em que vivemos, só a insensatez (desculpem)
ou o interesse econômico podem
levar alguém a optar por mais armas e balas nas mãos das pessoas.
Se você não é militar, não é policial -e obviamente está longe de
ser bandido-, não precisa de armas, cuja finalidade última é matar o semelhante. Por que então
votar a favor de que se vendam
armas e balas a todas as pessoas
indiscriminadamente? O Código
de Armas permite a posse delas
por quem efetivamente necessita.
Arma serve para matar. Quem
compra arma, quem possui arma,
está disposto a matar. Pense bem,
é isso que você quer? Matar? Tornar-se um homicida e carregar
para o resto da vida essa culpa na
consciência?
Certamente, você dirá que não,
que não pretende matar, que só
quer exercer o seu direito de possuir uma arma... Para nada? Para exibi-la ao assaltante? Acredita que o simples fato de possuir
uma arma o protegerá do assaltante armado? Você sabe que
não. Ao contrário: se ele perceber
que você está armado, mais razão
terá para alvejá-lo. Primeiro, porque ganhará uma nova arma e,
depois, estará justificado, uma
vez que, se você estava armado,
era para matá-lo; logo, se matou
você, foi em legítima defesa...
E você, caro amigo, cara amiga,
de fato não ia atirar nele, porque,
no fundo, não aceita tirar a vida
de um semelhante, mesmo que seja um ladrão. No mínimo, na hora H, você hesitará, e ele não. Essa
é a diferença: se não o mata, estando armado, morre. Ao portar
uma arma, você põe as coisas nesses termos, como no faroeste: matar ou morrer. É isso mesmo que
você deseja: meter-se no universo
infernal das armas, das balas, das
mortes? É essa a sua realidade?
Claro que não: essa é a realidade
dos violentos, dos homicidas, dos
assaltantes, dos traficantes, para
os quais matar é a coisa mais normal do mundo. Não é esse o seu
mundo: você quer a paz, a segurança, o convívio fraterno -você
quer a vida. Quem tem que cuidar de sua segurança é a polícia,
que é paga por nós para isso. Os
policiais são treinados para lidar
com armas e com criminosos. Em
vez de votar a favor das armas,
unamo-nos todos para exigir do
governo que cumpra com seu dever.
Não passa de sofisma dizer que
os que são pela proibição da venda de armas estão lhe tirando um
direito. Que direito? O de armar-se, o de matar? Preste atenção: a
campanha do "sim" é feita, na
ampla maioria dos casos, por pessoas pacíficas, atrizes, atores, músicos, compositores, escritores, jornalistas, intelectuais -sem falar
em pessoas sofridas do povo, que
pagam um alto preço nessa guerra suja. Como acusá-los de estarem contra seus direitos de cidadãos se sempre lutaram por eles?
Tampouco é verdade que, votando "sim", você estaria desarmando a cidadania, uma vez que os
que possuem armas continuarão
com elas. E muitas dessas pessoas
já as entregaram para serem destruídas, o que é louvável.
Por outro lado, já percebeu como a campanha do "não" é cara?
Já se perguntou quem está por
trás dela? Afora algumas pessoas
de boa-fé, mas equivocadas,
quem defende a venda de armas e
munições são os que as fabricam e
comercializam, os que enriquecem nessas atividades sinistras
cujo objetivo, em última instância, é matar. O Brasil é o país com
o mais alto índice de mortes por
armas de fogo. Votar "não" é votar para não mudar essa situação. É esse o seu desejo? Contribuir para manter tão vergonhoso
recorde?
Vou lhes contar um fato doloroso de que fui testemunha há muitos e muitos anos. Eu ainda era
um garoto, e meu pai costumava
me levar em suas viagens de comerciante ambulante, de São
Luís a Teresina, onde ficávamos
hospedados na pensão do Josias.
Ele era casado e tinha dois filhos,
um de dez anos e outro de sete,
com os quais eu brincava, enquanto meu pai saía para tratar
dos negócios. Terrível foi nossa
surpresa quando, numa nova
viagem, ao chegarmos à pensão
do Josias, encontramos a mulher
dele trancada no quarto, chorando, sem forças para levantar. Ele,
igualmente arrasado, contou a
meu pai o que ocorrera: o filho
maior matara o irmão enquanto
brincavam com um revólver.
- Mas de onde veio esse revólver?, indagou meu pai.
- Era meu. Estava escondido
na gaveta da cômoda, mas eles
acharam... A culpa é minha!, desabafou Josias, explodindo em soluços.
Pois é, uma arma disponível
sempre pode matar.
Meu pai, ao voltar para casa, a
primeira coisa que fez foi se desfazer do revólver, que recebera de
um freguês por conta de uma dívida. Nós éramos uma família de
11 irmãos. Já imaginou?
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