São Paulo, Segunda-feira, 20 de Dezembro de 1999


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FERNANDO GABEIRA
Anotações provisórias para o fim do século

O século ainda não acaba agora, sabemos todos. No entanto foram tantos os balanços e avaliações do milênio que todos se sentem tentados a formular o seu.
Günter Grass acaba de publicar "Meu Século", um conjunto de cem textos curtos, um para cada ano. Ele não pretende sintetizar a história. Apenas escolheu um tema, sem se preocupar se era ou não o mais importante, se estava ou não inserido no curso da história com "agá maiúsculo". Os narradores, os ângulos, mudam ao longo dos textos, mas ainda assim o século de Günter Grass acaba transmitindo uma idéia de que navegamos no mesmo barco.
No ano de 68, o narrador menciona o abandono do jargão existencialista pela dialética. Isso diz muito para quem, como eu, viveu o século 20 a partir da Segunda Guerra Mundial. Quando nossa curiosidade estava aguçada, os existencialistas como Sartre já tinham ocupado um espaço importante no debate político , uma vez que o impacto da brutalidade da guerra abriu caminho para se interrogar de novo o sentido da vida num universo desencantado.
Do jargão existencialista para a dialética era realmente um passo. Se a vida não tinha nenhum sentido predeterminado, e é necessário buscá-lo, desesperadamente, como quem crava as unhas na beira de um abismo, tudo dependeria de nossa escolha. Uma escolha feita dentro da história, uma opção pelos mais fracos. O trânsito do existencialismo para a revolução social e seu encontro com o marxismo, pelo menos no meu caso, se deu com uma certa naturalidade.
Tudo fazia um certo sentido até que o próprio socialismo real entra em parafuso. As revoluções que deram certo se revelaram um equívoco. O pior é que também se revelaram um equívoco as que não deram certo, as que, felizmente em alguns casos, se desintegraram antes de ganhar o poder político. Duplo fracasso.
Dupla ausência, no exílio, para usar a imagem de Abadelmalek Sayad, o sociólogo argelino que estudou a situação dos imigrantes. Não se está mais no seu país nem se está de fato no país de acolhida. Náufragos de uma visão que contestava o capitalismo no fim de sua primeira revolução industrial, íamos conhecer no caldeirão das grandes cidades do Primeiro Mundo alguns sintomas dessa nova fase, na qual o capitalismo se expande para todos os espaços geográficos e todas as relações humanas.
Globalização. Alguns andam em busca de uma nova utopia; outros acham que o próprio socialismo renovado será alavanca de novos sonhos. O problema é que o século produziu grandes ditadores e também uma sólida teoria sobre o totalitarismo. Quem embarcar em utopias terá de se explicar aos milhões de mortos que tombaram por serem um estorvo aos salvadores do mundo.
Sobraram apenas alguns princípios -as unhas que você ainda pode cravar na beira do abismo: democracia, justiça social, consciência ecológica, direitos humanos. Mas sem um roteiro predeterminado descrevendo todas as fases da história futura.
Confesso que não posso reclamar do século. O simples fato de ter sobrevivido é uma dádiva. Atribui-se ao deputado Ibrahim Abi-Ackel uma frase que merece ser anotada. Ele foi denunciado pela TV Globo com uma falsa acusação e conseguiu sobreviver politicamente ao massacre da mídia.
"Sou árabe", disse ele. "Dêem-me um copo d'água e consigo atravessar o deserto."
Espero que os fatos que vão se desdobrar no século 21 tornem essa frase apenas uma imagem poética. Mas por via das dúvidas é bom mantê-la anotada. O século 21 pode ser um longo deserto, e ainda tenho um ano para pensar num balanço. Estou apenas aproveitando a excitação em torno do ano 2000 para olhar para trás, rápido e rasteiro.
O ideal seria viver como essas equilibristas profissionais que andam na corda bamba. Seu segredo é ir passo a passo, concentrado em cada um deles como se fosse o último. Num fim de milênio, é preciso olhar para trás e para frente. Sem sair da corda bomba.


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