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FERNANDO GABEIRA
Anotações provisórias para o fim do século
O século ainda não acaba agora,
sabemos todos. No entanto foram
tantos os balanços e avaliações do
milênio que todos se sentem tentados a formular o seu.
Günter Grass acaba de publicar
"Meu Século", um conjunto de
cem textos curtos, um para cada
ano. Ele não pretende sintetizar a
história. Apenas escolheu um tema, sem se preocupar se era ou
não o mais importante, se estava
ou não inserido no curso da história com "agá maiúsculo". Os narradores, os ângulos, mudam ao
longo dos textos, mas ainda assim
o século de Günter Grass acaba
transmitindo uma idéia de que
navegamos no mesmo barco.
No ano de 68, o narrador menciona o abandono do jargão existencialista pela dialética. Isso diz
muito para quem, como eu, viveu
o século 20 a partir da Segunda
Guerra Mundial. Quando nossa
curiosidade estava aguçada, os
existencialistas como Sartre já tinham ocupado um espaço importante no debate político , uma vez
que o impacto da brutalidade da
guerra abriu caminho para se interrogar de novo o sentido da vida
num universo desencantado.
Do jargão existencialista para a
dialética era realmente um passo.
Se a vida não tinha nenhum sentido predeterminado, e é necessário buscá-lo, desesperadamente,
como quem crava as unhas na
beira de um abismo, tudo dependeria de nossa escolha. Uma escolha feita dentro da história, uma
opção pelos mais fracos. O trânsito do existencialismo para a revolução social e seu encontro com o
marxismo, pelo menos no meu caso, se deu com uma certa naturalidade.
Tudo fazia um certo sentido até
que o próprio socialismo real entra em parafuso. As revoluções
que deram certo se revelaram um
equívoco. O pior é que também se
revelaram um equívoco as que
não deram certo, as que, felizmente em alguns casos, se desintegraram antes de ganhar o poder
político. Duplo fracasso.
Dupla ausência, no exílio, para
usar a imagem de Abadelmalek
Sayad, o sociólogo argelino que
estudou a situação dos imigrantes. Não se está mais no seu país
nem se está de fato no país de acolhida. Náufragos de uma visão
que contestava o capitalismo no
fim de sua primeira revolução industrial, íamos conhecer no caldeirão das grandes cidades do
Primeiro Mundo alguns sintomas
dessa nova fase, na qual o capitalismo se expande para todos os espaços geográficos e todas as relações humanas.
Globalização. Alguns andam
em busca de uma nova utopia;
outros acham que o próprio socialismo renovado será alavanca de
novos sonhos. O problema é que o
século produziu grandes ditadores e também uma sólida teoria
sobre o totalitarismo. Quem embarcar em utopias terá de se explicar aos milhões de mortos que
tombaram por serem um estorvo
aos salvadores do mundo.
Sobraram apenas alguns princípios -as unhas que você ainda
pode cravar na beira do abismo:
democracia, justiça social, consciência ecológica, direitos humanos. Mas sem um roteiro predeterminado descrevendo todas as fases da história futura.
Confesso que não posso reclamar do século. O simples fato de
ter sobrevivido é uma dádiva.
Atribui-se ao deputado Ibrahim
Abi-Ackel uma frase que merece
ser anotada. Ele foi denunciado
pela TV Globo com uma falsa
acusação e conseguiu sobreviver
politicamente ao massacre da mídia.
"Sou árabe", disse ele. "Dêem-me um copo d'água e consigo
atravessar o deserto."
Espero que os fatos que vão se
desdobrar no século 21 tornem essa frase apenas uma imagem poética. Mas por via das dúvidas é
bom mantê-la anotada. O século
21 pode ser um longo deserto, e
ainda tenho um ano para pensar
num balanço. Estou apenas aproveitando a excitação em torno do
ano 2000 para olhar para trás, rápido e rasteiro.
O ideal seria viver como essas
equilibristas profissionais que andam na corda bamba. Seu segredo é ir passo a passo, concentrado
em cada um deles como se fosse o
último. Num fim de milênio, é
preciso olhar para trás e para
frente. Sem sair da corda bomba.
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