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CONTARDO CALLIGARIS
Psicopatas bem ou malsucedidos
As pesquisas sobre motivação são biquínis: mostram muita coisa, mas não o essencial
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ADMITIMOS SEM hesitar que o
mundo é composto de moléculas, átomos, células etc.,
mas isso não altera nossa percepção
da realidade. Estou num bar, vejo e
toco a cadeira e a mesa, converso
com o garçom; mesmo se eu fosse
professor de física ou biologia, não
me pareceria estar lidando com
aglomerados instáveis de partículas.
Na nossa percepção da subjetividade humana, acontece uma coisa
análoga. Posso saber que minhas escolhas são o efeito de meus genes, de
meu passado, da forma e da quantidade de minha matéria cerebral,
mas nada disso altera o sentimento
fundamental de que estou agindo livremente. Isso vale também para os
outros: reconheço tudo o que os determina, mas lhes atribuo a mesma
liberdade com a qual imagino agir.
Nunca encontrei um drogado, alcoólatra ou fumante que não declarasse poder parar quando quisesse.
E nunca encontrei um familiar ou
próximo de drogado, alcoólatra ou
fumante que não pensasse, em última instância, que o "viciado", para
deixar seu "vício", precisaria sobretudo de boa vontade.
Essa diferença entre nosso saber e
nossa percepção (de nós mesmos e
dos outros) alimenta um paradoxo,
que é provavelmente salutar: pedimos que a ciência transforme o mistério das motivações humanas num
cálculo exato, mas acreditamos na
responsabilidade, na culpa e na possibilidade de redenção (idéias que
pressupõem a liberdade do sujeito).
Quem tem razão: nossa percepção
ou nossa ciência?
Seja como for, meu professor de
estatística na Universidade de Milão
começava seu curso de primeiro ano
com esta declaração (um pouco machista): "A estatística", ele dizia, "é
como um biquíni: ela mostra muita
coisa, mas esconde o essencial". Pois
é, as pesquisas científicas sobre a
motivação humana são quase sempre biquínis, e não só porque os resultados têm valor estatístico.
Eis um exemplo. Desde 1990, graças a uma pesquisa desenvolvida por
Antônio Damásio, presume-se que
exista uma relação entre o comportamento anti-social do psicopata e
alguma redução do córtex pré-frontal. Damásio verificou essa correspondência em sujeitos que se tornaram impulsivos e violentos depois
de um acidente.
A seguir, uma série de pesquisas
mostrou que essa correlação vale especificamente para a matéria cinza,
cuja redução seria responsável pela
falta de inibições, já identificada como uma caraterística clássica dos
psicopatas.
Recentemente, a revista "Biological Psychiatry" (2005, vol. 57) publicou uma pesquisa de Yang, Raine e
outros, "Volume Reduction in Prefrontal Gray Matter in Unsuccessful
Criminal Psychopaths" (redução de
volume na matéria cinza pré-frontal
em psicopatas criminosos fracassados). Esse título curioso se justifica
porque os autores, por uma vez, tiveram a idéia de comparar três grupos:
um grupo de controle (cidadãos comuns e pacíficos que nem a gente),
criminosos aprisionados (que seriam, portanto, psicopatas fracassados, visto que se deixaram prender)
e criminosos que nunca foram presos (aqui, obviamente, reunir o grupo foi difícil).
É uma novidade notável: em regra, nas pesquisas sobre a mente criminosa, os pesquisadores recrutam
seus sujeitos nas prisões, sem levar
em conta dois fatores. O primeiro é
uma antiga constatação da psicologia social: o próprio ambiente carcerário transforma os sujeitos. O segundo (salientado pelos autores da
nova pesquisa) é que talvez exista
uma diferença psíquica e cerebral
entre os psicopatas que se deixam
pegar - ou seja, como sugerem os
autores, os criminosos fracassados
- e os bem-sucedidos, que conseguem perpetrar seus crimes em toda
liberdade.
Pois bem, o resultado da pesquisa
é o seguinte: nos criminosos fracassados (aprisionados), há, de fato,
uma redução do volume da matéria
cinza pré-frontal, enquanto os psicopatas bem-sucedidos (que evitam
a prisão) têm um córtex parecido
com o nosso.
Moral da história: a redução de
matéria cinza no córtex não nos diz
quem é psicopata e quem não é; ela
nos indica apenas quem é impulsivo
e, portanto, se for criminoso, tenderá a agir de maneira a ser preso. Note-se, de passagem, que, normalmente, os psicopatas criminosos de
colarinho branco são menos impulsivos que os assaltantes de farol; é
bem possível, aliás, que haja mais
psicopatas fora da cadeia do que
dentro.
Enfim, uma recomendação: de
qualquer forma, se você for psicopata e criminoso, fique frio.
ccalligari@uol.com.br
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