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"PELE DE ASNO"
Demy nos arrasta ao reino da fábula
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA
Jacques Demy foi um cineasta
do encantamento. Talvez o último dessa linhagem feita de momentos tão envolventes quanto os
filmes de Jean Cocteau e Vincente
Minnelli.
E certamente Demy foi o mais
delirante de todos, pois, tendo tudo contra, conseguiu elevar o musical europeu à altura do de Hollywood. Com isso, a volta de "Pele
de Asno" ao cartaz, com som e
imagem restaurados, nos traz essa
arte que hoje parece morta, já que
baseada numa crença quase sem
fim na verdade de seu objeto e na
possibilidade de sua arte de abordá-lo e traduzi-lo em imagens.
"Pele de Asno" é a transposição
para imagens cinematográficas
de um conto de Perrault, sobre a
princesa que, por intervenção de
sua fada, foge de seu reino para
escapar ao desejo incestuoso do
pai. Vive na floresta, como criada,
suja e escondida sob uma pele de
asno, até ser localizada por um
príncipe que se apaixona por ela.
Eu disse acima que eram "imagens cinematográficas" porque
contos de fada envolvem imagens
de maneira aguda. Só os vivenciamos por elas. Transformar imagens mentais em imagens físicas
não é coisa fácil, mas é aquilo a
que o filme se propõe desde o primeiro fotograma: vemos o livro e,
nele, como ilustração, um castelo.
A câmera se aproxima da ilustração e uma fusão nos joga no castelo real, que na verdade é tão imaginário quanto o outro.
O mesmo, aproximadamente,
se passa com os atores. Catherine
Deneuve, a princesa, Jacques Perrin, o príncipe, Delphine Seyrig, a
fada, e Jean Marais, o rei, são figuras capazes de participar ao mesmo tempo do mundo concreto e
do imaginário. Eles nos arrastam
para dentro da fábula com tal intensidade que, ao fim de certo
tempo, vemos a doce princesa
executar uma receita de bolo como se fosse a coisa mais fantástica
do mundo (na verdade, no interior da fábula, é mesmo).
"Pele de Asno" é uma variante
da história do sapo que era príncipe, narrada com uma convicção
que, no cinema de hoje, movido
pelo cinismo, a muitos soará anacrônica. Demy faz um caminho
inverso à maior parte dos filmes:
parte da abominação (o incesto)
para chegar ao amor sublime. Vai
do inusitado ao clichê e realiza este clichê com tal convicção que
ele, dobrando-se ao artista, mostra-se a nós com o frescor das coisas recém-inventadas. E, se chega
pelos ares, invadindo o filme com
a modernidade, isso pode nos
surpreender, mas não quebrar o
encanto. Para Jacques Demy, uma
princesa, um poema, um helicóptero são todos entes imaginários.
Pele de Asno
Peau d'Âne
Direção: Jacques Demy
Produção: França, 1970
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