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CICLO ATLÂNTIDA
"FANTASMA POR ACASO"
Mostra continua hoje com "Luz dos Meus Olhos" (47), com Cacilda Becker, no Sesc Pompéia
Cópia em frangalhos traz o melhor Oscarito
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DE CINEMA
O que aconteceu quarta-feira
passada no Sesc Pompéia foi bem
incomum. Na tela, passava uma
cópia em frangalhos de um velho
filme, à qual faltavam os minutos
finais. A projeção parava de tempos em tempos, por vezes o som
sumia para reaparecer em seguida, límpido ou quase. Um dos rolos estava invertido. Por fim, havia as cadeiras de Lina Bo Bardi,
que mais parecem instrumentos
de tortura, onde ninguém se acomoda sequer por um instante.
No entanto todos na sala tinham a sensação de estar vivendo
um momento único, o da exibição de "Fantasma por Acaso", de
Moacyr Fenelon. Único literalmente, porque, como explica Maximo Barro, curador da mostra e
exposição dedicadas aos 60 anos
da Atlântida, há 50 anos esse filme
não passava e é possível que não
passe também nos próximos 50.
Para começar, Fenelon é um elo
perdido do cinema brasileiro: o
criador da Atlântida em 1941, o
realizador com preocupações sociais, o ativista do cinema brasileiro, morto em 1953. Mas seus filmes quase ninguém conhece. Os
remanescentes são tesouros quase perdidos, que sobrevivem nessas cópias capengas.
É impossível, a partir de um filme (já que só pude ver o início de
"Dominó Negro"), tirar conclusões mais detidas sobre um estilo
e uma obra. Mas "Fantasma por
Acaso" fornece pistas eloquentes
sobre o talento de Fenelon.
Apesar de ter sido um homem
de esquerda, seu filme denota
uma saudável influência hollywoodiana. Os diálogos são coloquiais, distantes do padrão pedante instaurado pela Vera Cruz:
eles fluem, reproduzindo um falar
nada estranho ao português do
Brasil que se cultiva na rua.
Ao mesmo tempo, existe uma
atenção aos detalhes que permitem ver a marca do grande diretor, daquele que escreve em imagens. Na primeira sequência, Oscarito desperta. O despertar no cinema é um dos momentos mais
delicados, e poucas vezes o espectador deixa de sentir a falsidade
do gesto. Fenelon contorna esse
problema com um recurso simples, porém decisivo: coloca um
travesseiro sobre a cabeça do personagem, retomando com graça
um gesto frequente na nossa vida,
mas raro nos filmes. Em seguida,
Oscarito procura seus chinelos.
Encontra apenas um deles. E se
põe a buscar o outro, movendo os
pés daqui e dali, cada vez mais
nervosamente, em seguida se
abaixando para procurá-lo.
Descrevo essas cenas que indicam o absoluto à vontade de Fenelon, a despreocupação com as
"grandes idéias". O ideal seria ver
como essas cenas fluem, como o
diretor reenquadra com panorâmicas elegantes e eficientes, como
decupa com precisão ou move
sua câmera discretamente. Não
busca efeitos, e sim oferecer a visão mais adequada da cena.
Existe a história: Oscarito, contínuo de uma companhia de aviação, morre e é convocado pelo pai
do dono da companhia (também
já morto) a voltar à Terra a fim de
salvar o casamento de seu filho,
herdeiro um tanto irresponsável.
Estamos a léguas do que se entende por chanchada, embora se
trate de uma comédia com números musicais inseridos meio a fórceps. Estamos também diante do
melhor Oscarito que já me foi dado ver. Nunca sua mímica foi tão
expressiva e viva, nunca seu espírito se adequou tão bem ao roteiro (ao contrário das chanchadas
posteriores, em que suas tiradas
não têm relação intrínseca com
aquilo de que se trata).
Fenelon não dirige bem apenas
Oscarito. Seria possível dizer que
todos os atores estão adequados
para a câmera, em função dela.
Não há sombra de academismo.
As imagens são leves, obedecem
não a convenções de linguagem,
mas a uma intuição poderosa e a
um desejo que organiza o movimento das pessoas e objetos.
Seria injusto não dizer uma palavra sobre a marcação, tremendamente ágil, dos atores, e que colabora muitíssimo para esse andamento fluente do filme.
Para resumir: é estranho que o
texto do belo catálogo da mostra
encontre uma série de defeitos no
filme e qualifique a direção de um
tanto burocrática. A mim, parece
discreta; burocrática, jamais.
Hoje, o ciclo da Atlântida prossegue, apresentando "Luz dos
Meus Olhos" (1947), de José Carlos Burle. Isto é, a fase desconhecida de um cineasta mais conhecido
por seu trabalho posterior.
Para completar, "Luz dos Meus
Olhos" é o primeiro (e até então
invisível) trabalho em cinema de
Cacilda Becker, contracenando
com Grande Otelo. Deve ser outra
cópia em frangalhos. As cadeiras
continuarão as mesmas, infernais. Teremos alguma dor de cabeça. Mas vai compensar estar lá.
Filme: Luz dos Meus Olhos
Quando: hoje, às 19h
Onde: teatro do Sesc Pompéia (r. Clélia,
93, tel. 0/xx/11/3871-7700)
Quanto: grátis
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