São Paulo, quarta-feira, 14 de março de 2001

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CICLO ATLÂNTIDA

"FANTASMA POR ACASO"

Mostra continua hoje com "Luz dos Meus Olhos" (47), com Cacilda Becker, no Sesc Pompéia

Cópia em frangalhos traz o melhor Oscarito

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DE CINEMA

O que aconteceu quarta-feira passada no Sesc Pompéia foi bem incomum. Na tela, passava uma cópia em frangalhos de um velho filme, à qual faltavam os minutos finais. A projeção parava de tempos em tempos, por vezes o som sumia para reaparecer em seguida, límpido ou quase. Um dos rolos estava invertido. Por fim, havia as cadeiras de Lina Bo Bardi, que mais parecem instrumentos de tortura, onde ninguém se acomoda sequer por um instante.
No entanto todos na sala tinham a sensação de estar vivendo um momento único, o da exibição de "Fantasma por Acaso", de Moacyr Fenelon. Único literalmente, porque, como explica Maximo Barro, curador da mostra e exposição dedicadas aos 60 anos da Atlântida, há 50 anos esse filme não passava e é possível que não passe também nos próximos 50.
Para começar, Fenelon é um elo perdido do cinema brasileiro: o criador da Atlântida em 1941, o realizador com preocupações sociais, o ativista do cinema brasileiro, morto em 1953. Mas seus filmes quase ninguém conhece. Os remanescentes são tesouros quase perdidos, que sobrevivem nessas cópias capengas.
É impossível, a partir de um filme (já que só pude ver o início de "Dominó Negro"), tirar conclusões mais detidas sobre um estilo e uma obra. Mas "Fantasma por Acaso" fornece pistas eloquentes sobre o talento de Fenelon.
Apesar de ter sido um homem de esquerda, seu filme denota uma saudável influência hollywoodiana. Os diálogos são coloquiais, distantes do padrão pedante instaurado pela Vera Cruz: eles fluem, reproduzindo um falar nada estranho ao português do Brasil que se cultiva na rua.
Ao mesmo tempo, existe uma atenção aos detalhes que permitem ver a marca do grande diretor, daquele que escreve em imagens. Na primeira sequência, Oscarito desperta. O despertar no cinema é um dos momentos mais delicados, e poucas vezes o espectador deixa de sentir a falsidade do gesto. Fenelon contorna esse problema com um recurso simples, porém decisivo: coloca um travesseiro sobre a cabeça do personagem, retomando com graça um gesto frequente na nossa vida, mas raro nos filmes. Em seguida, Oscarito procura seus chinelos. Encontra apenas um deles. E se põe a buscar o outro, movendo os pés daqui e dali, cada vez mais nervosamente, em seguida se abaixando para procurá-lo.
Descrevo essas cenas que indicam o absoluto à vontade de Fenelon, a despreocupação com as "grandes idéias". O ideal seria ver como essas cenas fluem, como o diretor reenquadra com panorâmicas elegantes e eficientes, como decupa com precisão ou move sua câmera discretamente. Não busca efeitos, e sim oferecer a visão mais adequada da cena.
Existe a história: Oscarito, contínuo de uma companhia de aviação, morre e é convocado pelo pai do dono da companhia (também já morto) a voltar à Terra a fim de salvar o casamento de seu filho, herdeiro um tanto irresponsável.
Estamos a léguas do que se entende por chanchada, embora se trate de uma comédia com números musicais inseridos meio a fórceps. Estamos também diante do melhor Oscarito que já me foi dado ver. Nunca sua mímica foi tão expressiva e viva, nunca seu espírito se adequou tão bem ao roteiro (ao contrário das chanchadas posteriores, em que suas tiradas não têm relação intrínseca com aquilo de que se trata).
Fenelon não dirige bem apenas Oscarito. Seria possível dizer que todos os atores estão adequados para a câmera, em função dela.
Não há sombra de academismo. As imagens são leves, obedecem não a convenções de linguagem, mas a uma intuição poderosa e a um desejo que organiza o movimento das pessoas e objetos.
Seria injusto não dizer uma palavra sobre a marcação, tremendamente ágil, dos atores, e que colabora muitíssimo para esse andamento fluente do filme.
Para resumir: é estranho que o texto do belo catálogo da mostra encontre uma série de defeitos no filme e qualifique a direção de um tanto burocrática. A mim, parece discreta; burocrática, jamais.
Hoje, o ciclo da Atlântida prossegue, apresentando "Luz dos Meus Olhos" (1947), de José Carlos Burle. Isto é, a fase desconhecida de um cineasta mais conhecido por seu trabalho posterior.
Para completar, "Luz dos Meus Olhos" é o primeiro (e até então invisível) trabalho em cinema de Cacilda Becker, contracenando com Grande Otelo. Deve ser outra cópia em frangalhos. As cadeiras continuarão as mesmas, infernais. Teremos alguma dor de cabeça. Mas vai compensar estar lá.



Filme: Luz dos Meus Olhos
Quando: hoje, às 19h
Onde: teatro do Sesc Pompéia (r. Clélia, 93, tel. 0/xx/11/3871-7700)
Quanto: grátis




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