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CONTARDO CALLIGARIS
O trauma está na moda
Claro, existem experiências
que causam estresse em
qualquer um. A lista é intuitiva:
sofrer abuso, ser estuprado, torturado, bombardeado, atropelado,
abandonado ou, simplesmente,
maltratado.
Acreditamos firmemente que as
feridas produzidas em nosso espírito por experiências desse tipo
continuem doendo e supurando
durante um bom tempo, se não
para sempre.
Essa convicção alimenta indulgências e pretextos duvidosos. Vai
ver que a mãe de Fernandinho
Beira-Mar batia nele três vezes
por dia; portanto, pedimos a clemência da corte. Uma moça não
consegue dormir e é consumida
pela angústia; acontece que, no
escritório, ela é constantemente
exposta a observações devassas
que a traumatizam: será que pode exigir danos materiais e morais? A fé no trauma alimenta
uma indústria jurídica e terapêutica.
Excessos à parte, ninguém nega,
hoje, que os traumas existam e tenham consequências nefastas.
Mas é notável que a categoria clínica de "transtorno de estresse
pós-traumático" tenha sido reconhecida oficialmente só em 1980.
Acontece que somos cada vez
mais modernos: veneramos o futuro e perdemos a capacidade de
integrar o passado na narrativa
de nossas vidas. Com isso, os
eventos marcantes aparecem facilmente como traumas, restos
enigmáticos aos quais atribuímos
poderes quase mágicos porque
não conseguimos incorporá-los à
nossa história.
Richard McNally acaba de publicar "Remembering Trauma"
(Lembrando-se do Trauma), editora Belknap/Harvard. O livro
apresenta de maneira magistral e
exaustiva a literatura científica
sobre o tema e responde a estas
perguntas cruciais: 1) O que constitui um trauma? 2) Por que e como o dito trauma tem consequências nefastas?
1) Nenhum evento é traumático
por natureza. Uma violência extrema pode deixar meu espírito
incólume, enquanto uma palavrinha inofensiva pode me perturbar para sempre. O valor traumático de um evento não depende de sua brutalidade, mas de como eu integro esse evento no sentido que atribuo à minha existência.
Uma pesquisa demonstra que
presos políticos torturados sofrem
muito menos de transtornos pós-traumáticos do que presos que foram torturados, digamos assim,
"por engano". Ou seja, a violência
marca para a vida só aqueles que
não dispõem de recursos para lhe
atribuir um sentido.
Outras pesquisas mostram que,
contrariamente à opinião recebida, a percentagem de militares
americanos que sofreram um "colapso nervoso" durante a Guerra
do Vietnã é muito menor do que
nas outras guerras do século passado. Mas a proporção muda ao
levar em conta os soldados que
manifestaram transtornos pós-traumáticos depois da volta para
casa. Ou seja, os horrores da guerra se tornaram traumas quando
os veteranos aprenderam que
suas vivências não eram valorizadas pela maioria do povo americano. Eles se depararam, assim,
com a impossibilidade de dar sentido às experiências pelas quais tinham passado. O filme que trata
dos efeitos traumáticos da Guerra
do Vietnã nos soldados americanos não é "Apocalypse Now", mas
"Rambo" (o primeiro da série).
2) Sobre a razão pela qual um
evento perturbador pode nos afetar duravelmente, temos opiniões
contraditórias. Pensamos que ele
nos afeta porque não conseguimos esquecê-lo. Ou, ao contrário,
que o esquecemos, e agora ele nos
atormenta de seu esconderijo nos
bastidores da memória. Coerente,
a sabedoria popular propõe dois
remédios opostos: "Pare de pensar nisso que vai se sentir melhor"
ou, então, "Tente se lembrar detalhadamente, pois os pensamentos
que a gente evita voltam sob forma de pesadelos". Qual é a atitude certa?
Para McNally, a questão é descabida, pois, de qualquer forma,
segundo as pesquisas, os eventos
perturbadores são quase sempre
vividamente lembrados. E nada
prova que exista algum tipo de
amnésia seletiva dos acontecimentos desagradáveis. Se você
não se lembra de ter sofrido abuso
quando criança, você não sofreu.
É possível ter calafrios pensando
nas fantasias escusas que, por alguma razão, você supôs nos outros e em si mesmo. Mas, quanto
aos fatos, fique sossegado: o que
você não lembra não aconteceu.
Em suma, o dilema não é entre
esquecer e lembrar, mas entre
conseguir ou não dar sentido a fatos dos quais, inevitavelmente,
nos lembramos.
A vulgarização da psicanálise
foi responsável, em parte, pela
idéia de que seríamos todos patologicamente amnésicos. "Doutor,
sofro de vertigem e não sei por
quê; me ajude." "Pois é", responde o doutor, "está dito em seus sonhos (em linguagem misteriosa)
que sua mãe, irritada, um dia
deixou cair esse nenê que não parava de chorar". Bingo! Lembre-se e cure-se.
O diálogo dá (e deu mesmo) um
bom filme. Mas as verdadeiras
questões são outras. Não esqueci
que a mãe me deixou cair. Agora
será que ela quis me jogar no
chão? Foi falta de amor? Foi vontade repentina de agarrar o pai?
De agarrar o carteiro? Ou o acidente foi o efeito do excesso de Hipoglós, que me tornou escorregadio como um sabonete?
O fato é sempre bem lembrado.
Nossos transtornos (e nossa vida)
dependem das respostas que encontramos para as perguntas que
acabo de evocar e para outras
análogas.
ccalligari@uol.com.br
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