São Paulo, sábado, 12 de fevereiro de 2000


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ARTIGO
Qual é o projeto cultural e político atual do cinema brasileiro?

PAULO THIAGO
especial para a Folha

O cineasta Orlando Sena recorda no livro de Alex Viany, "O Processo do Cinema Novo", em relação à imprensa: "A crítica era uma coisa paralela aos filmes. Glauber Rocha fazia "Barravento" e o pessoal da crítica andava ao lado. Além de fazer propaganda desses projetos, a crítica também fazia uma teoria em torno do que deveriam ser esses filmes. Mesmo antes deles aparecerem". Sem nostalgia dos tempos utópicos, a declaração apenas confirma a elaboração de um pensamento cinematográfico, uma criação teórica que se afirmava nos anos 60 ao mesmo tempo em que os cineastas viviam na prática a realização das obras. Sena lembrava o que se passava na Bahia, enquanto no eixo Rio-São Paulo ensaístas como Paulo Emílio Salles Gomes, Gustavo Dahl e Jean-Claude Bernardet atuavam na imprensa e faziam artigos nos quais os projetos cinematográficos eram investigados em profundidade. Isso abria espaço ao debate das idéias, com a manifestação dos cineastas, que além dos filmes elaboravam propostas estéticas, como a "estética da fome" de Glauber Rocha. Alguns anos depois, vieram os artigos explosivos de Rogério Sganzerla com seu cinema transgressor, as posições de João Batista de Andrade e o militante cinema de rua, o tropicalismo de Joaquim Pedro de Andrade e seu "Macunaíma". Nos anos 70, tivemos as teses de Gustavo Dahl de que "mercado é cultura" e a polêmica provocada por Carlos Diegues a propósito das "patrulhas ideológicas". Foi um tempo em que a imprensa se integrava à realização dos filmes não apenas para divulgá-los generosamente (como faz atualmente), ou resenhá-los ou criticá-los com a isenção de especialistas. Elaborava-se, como já disse e quero frisar, um "pensamento cinematográfico", uma reflexão teórica permanente que realimentava, redirecionava, afirmava, defendia ou rejeitava caminhos para a produção das obras. Nos atuais tempos pragmáticos, globalizados, da crise do pensamento ideológico e da pós-modernidade, vivemos um chamado renascimento do cinema brasileiro, marcado pela diversidade regional, temática, de linguagens, gêneros e estréias de novos realizadores, mas não há teorias ou propostas estéticas que interpretem ou provoquem uma discussão mais profunda em torno das fitas. Esses tantos filmes, que nascem por todos os lados, apesar dos avanços no mercado interno e os inúmeros prêmios internacionais, parecem não conseguir estabelecer um diálogo intenso com a sociedade. Temas como o da identidade nacional, a violência social, a recorrência das situações e fenômenos históricos no país são levantados nos longas-metragens, mas não chegam a pautar maiores reflexões. O vazio não está nos filmes, pois há elogios da crítica profissional e os prêmios mundo afora comprovam sua qualidade, mas talvez esteja na maneira com que o cinema brasileiro passou a ser encarado pela imprensa, pela forma com que o Estado manifesta a sua política na área, e pelos próprios cineastas que não vêm a público provocar o debate, mas apenas vender seus filmes, como produtos a serem comprados pelos espectadores. O fato é que agora a investigação estética foi substituída pela investigação das prestações de contas, das notas fiscais, dos custos dos filmes e das rendas das bilheterias. O cinema ocupa espaço na mídia e os produtores se manifestam para discutir números, leis de fomento, estatísticas e questões legais. Temas mais afeitos às páginas de economia e política, e em alguns casos, às páginas policiais tomam os cadernos culturais dos jornais.

"Permanecem acima de qualquer suspeita os intermediários negocistas, os empresários que propõem recompras aos produtores"



Os cineastas estão atrelados às leis de incentivo fiscal, são reféns de captações e intermediários e não se discute uma política cultural no país.
Acusado simplesmente de ruim, o filme "O Guarani", de Norma Bengell, e seus possíveis equívocos de um neo-romantismo exagerado (distante de um registro mais realista dos primórdios da nossa civilização), apenas virou assunto de debate na mídia quando tornou-se foco de noticiário escandaloso sobre as contas da atriz e produtora no MinC.
Norma, que foi presa durante a ditadura e lutou no exílio contra o governo militar, corre o risco de ser detida em plena democracia. Patética e absurda contradição, com uma artista que já provocou o saudável escândalo cultural de fazer o primeiro nu frontal do cinema em "Os Cafajestes", de Ruy Guerra.
Não questiono o direito e o dever dos jornalistas de informar os fatos e investigar. E não acho, que como o delegado do filme de Elio Petri, "Investigação sobre um Cidadão Acima de Qualquer Suspeita", os cineastas devam viver num nirvana de impunidades.
Como declarou o secretário do Audiovisual, vivemos numa "democracia republicana". Mas o que ocorre no momento é que os artistas se tornaram o alvo principal, o tema central de suspeição. E nessa mesma República dos incentivos fiscais permanecem acima de qualquer suspeita os intermediários negocistas, as poderosas fundações públicas e privadas, os maus empresários que propõe os rebates e recompras dos incentivos aos produtores, os falsários que emitem notas frias, e todos os outros setores apoiados por incentivos, sobre os quais não se vê uma linha na mídia.
O poder público parece não ter instrumentos (como no filme de Petri) para agir sobre esses outros cidadãos, e no final os responsáveis são os artistas, dependentes para criar suas obras, de um sistema de financiamento à cultura complexo e sujeito a todas as falhas apontadas. Defeitos crônicos das relações do Estado com a cultura, na República neoliberal.
Na conjuntura atual do "cinema investigado", não sobre seu significado social e artístico, sobre sua linguagem, sobre sua proposta filosófica, sua dimensão humanística e sua necessidade política num mundo de homogeneização cultural avassaladora, mas insistentemente sobre sua contabilidade financeira surgem também artigos e matérias positivas, ufanistas, procurando mostrar que tudo vai muito bem obrigado, que é necessário separar o joio do trigo.
Vestais da moralidade pública em tom udenista são substituídas pela numerologia mercadológica e as premiações oscarizadas. Se as cruzadas escandalosas anticorrupção podem trazer à memória as campanhas antigetulistas (curiosamente orquestradas na época, entre outros pelo personagem "Chatô", agora tema do filme no olho do furacão), os textos ufanistas remetem aos sentimentos patrióticos do Brasil gigante adormecido, que desperta sob os refletores.
Nesse quadro agrega-se o novo Grande Prêmio Cinema Brasil, iniciativa do Ministério da Cultura, espécie de renascimento da esquecida Coruja de Ouro dos anos 70, que prestigiou e promoveu muitos bons filmes brasileiros da época.
Policarpo Quaresma, se vivo fosse, defensor das causas brasileiras, apoiaria vigorosamente o prêmio que vem disputar espaço das premiações no exterior. Afinal, perguntaria Policarpo, por que um filme só é saudado por todos quando ganha prêmio no estrangeiro? Chega de Oscar, Urso, Leão, Palma e festivais ao redor do planeta. Temos agora, escolhidos por uma comissão de críticos, distribuidores e exibidores, os filmes a serem premiados por um colégio eleitoral de membros da sociedade. O critério poderia ser inverso, o colégio eleitoral fazer as indicações e um júri de alto nível dar os prêmios. Como um dinossauro nacionalista, que me orgulho de continuar a ser, fecho totalmente com Policarpo, e estarei na festa para torcer por meus colegas vencedores.
Sem hipocrisia, dou logo o meu voto para melhor diretor ao Babenco, por seu belíssimo filme pessoal ("Coração Iluminado"), e para melhor filme a "Dois Córregos", de Carlos Reichenbach, o único que me fez chorar de emoção, dos que foram lançados entre outubro de 98 e outubro de 99.
Estranho porém a ausência entre os indicados de "Mauá - O Imperador e o Rei", tour-de-force épico do diretor Sérgio Rezende. Aliás filme bastante atual, principalmente em relação aos cineastas, todos transformados hoje em pequenos barões de Mauá, lutando na selva do jogo capitalista tupiniquim para realizar suas obras, envolvidos nos embates difíceis e tensos com o Estado brasileiro.
O fato é que os incentivos financiaram muitos filmes, mas nenhuma política de distribuição e difusão do cinema nacional.
Afinal qual é o projeto cultural e político atual do cinema brasileiro? Ele já teve alguns ao longo da sua história, que se transformaram em ações concretas com o tempo.
Se falta um projeto, vem o Estado e faz suas leis e regras, querendo atualmente até reformá-las. Há uma comissão especial de cinema no Senado Federal, que já teve quatro audiências para discutir no Congresso a questão da indústria cinematográfica.
O que está em pauta é a hegemonia audiovisual do planeta, o uso indiscriminado dessa linguagem como instrumento de dominação psicossocial da humanidade e a extinção das culturas dos países periféricos. Não há exagero nem ideologia nesta afirmação. Ingênuo é quem pensa o contrário.
Por isso países como a França e a Espanha fazem políticas audiovisuais claras e agressivas.


Paulo Thiago, 54, é cineasta. Dirigiu "Policarpo Quaresma, Herói do Brasil" (98) e "Jorge, um Brasileiro" (89)


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