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CARLOS HEITOR CONY
Como os justos salvam a própria pele
Foram ler os jornais. Marcelino ficava sem veia, minguava-lhe o verbo quando Luíza estava ausente. Mas logo um calor
novo apossou-se dele. Leu em voz
alta a notícia de um acidente em
Copacabana: explodira o tanque
de óleo que alimentava o motor
de bombear os esgotos. A explosão, ocorrida dentro das galerias
subterrâneas, provocara deslocamento de ar, os tampões das ruas
foram atirados à distância, com
grandes estrondos. E houve mortos e feridos.
Da notícia, Marcelino tirou
conclusões terríveis. Eram os
Tempos que chegavam. A terra
vomitava fogo e fezes. E Copacabana, o bairro do pecado, símbolo
da moderna Babilônia, começava
a pagar por seus crimes. A podridão do subsolo explodira. Em breve, o bairro inteiro seria tragado
pela porcaria que atolaria os
mais altos edifícios. E depois viriam as ondas. Libertadas de seus
limites traçados no Gênesis, varreriam tudo, não ficaria pedra sobre pedra, molécula junto de molécula.
Bartoleo quis saber das ondas.
Temia-as, nunca quisera nada
com o mar, só de ver ficava tonto,
não desejava que o mar chegasse
até o Catumbi e entrasse pela sua
sala, arrebatando-o para seus
abismos.
Marcelino garantiu que estava
nos Livros. A Próxima Vinda importava numa avalancha de ondas que tragariam todas as Babilônias onde a Grande Meretriz
deitasse a correr de seus seios o vinho da fornicação. E os Tempos
estavam próximos, não podia haver mais dúvida.
Alarmado ante as evidências,
Bartoleo perguntou se não havia
um modo de escapar a tão universal castigo. Marcelino prometeu que "daria um jeito". Como
participante dos grandes movimentos que varreriam a civilização da face da Terra, fora avisado
pelo Astral de que haveria um lugar imune ao flagelo. Comunicara a revelação à Sociedade à qual
era filiado; havia necessidade de
preservar os Justos. E o lugar não
era muito longe, ali mesmo, em
Miguel Pereira, sítio de gravitação do globo terrestre por ocasião
dos cataclismos.
Bartoleo aprendia cada vez
mais. Não sabia nada a respeito
do eixo de gravitação, a Terra era
uma bola que rodava e já tinha
ido gente para a fogueira por causa disso. Era tudo o que sabia e
achava que era muito. Entretanto, havia o eixo de gravitação,
bem às suas barbas, em Miguel
Pereira!
Decidiram fazer um barraco
por lá. Bem modesto, apenas para
se abrigarem das celestiais iras.
Fizeram planos. Animado pelo
assunto, Marcelino resolveu botar
cartas na mesa. Os Tempos estavam próximos. Para escaparem
ao castigo, os eleitos teriam de se
refugiar em abrigos seguros que
só o Astral poderia indicar, pois
os castigos destinavam-se aos impuros, aos que bebiam o vinho da
fornicação. A Sociedade que o tinha abrigado fora recompensada
pelo Centro das Forças Ocultas
com a indicação do único lugar
de salvação. E era em Miguel Pereira.
Foi essa a explicação de Marcelino. Mas eu conhecia o assunto,
deu em escândalo, os jornais se
meteram nisso. Havia, com efeito,
um lugar destinado a proteger a
carcaça dos justos. Apenas não fora Marcelino o intermediário nessa questão de salvarem os eleitos
a própria pele. Fora o próprio
Grão-Mestre que recebera o aviso. Em transe espiritual, comunicou que os Tempos só respeitariam as terras situadas num raio
de 20 quilômetros de determinado ponto de Miguel Pereira. Por
esse ponto passaria o eixo de gravitação da Terra.
Singular coincidência deu muito barulho. Esses 20 quilômetros
de raio abrangiam a fazenda do
sogro do mesmo Grão-Mestre.
Morto o velho, os herdeiros ficaram em apuros para vender terras inúteis, sem ouro, sem cobre,
sem petróleo, mas arranjaram
coisa melhor, o eixo de gravitação
do Globo Terrestre.
Bem verdade que outra Sociedade Oculta, rival da de Marcelino, procedeu a consultas ao mesmo Astral, recebendo mensagens
não só excomungando a Sociedade da Rua da Quitanda, como revelando que o lugar isento aos flagelos não era Miguel Pereira, mas
Jacarepaguá, onde não passaria o
eixo de gravitação da Terra, mas,
em compensação, recebera a projeção de deriva de 99,079 graus da
estrela Sírius por ocasião do nascimento do Nosso Senhor Jesus
Cristo.
A Sociedade de Marcelino revidou a afronta, fez novas consultas
ao Astral, recebeu a confirmação
da mensagem anterior e o esclarecimento de que a sociedade rival assim procedia por motivos
ímpios: o Grande Espírito que
presidia a dissidência tinha loteamento no largo do Tanque.
Para Bartoleo, essas disputas
científicas em torno do eixo da
Terra ou da deriva de 99,079
graus de Sírius pouca importância tinham. Importante era a opinião do amigo. Iria para onde
Marcelino fosse. O fogo não o
queimaria, a água não o tragaria,
o tufão não o carregaria, a desintegração não o romperia em átomos pelo espaço afora. Estaria a
salvo em Jacarepaguá ou em Miguel Pereira, bastava estar ao lado de Marcelino. O próprio Marcelino tranqüilizou Bartoleo:
-Deixa comigo. Eu estarei "lá"!
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