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FERREIRA GULLAR
Um passarinho me contou...
Encontrei-o no calçadão
do Leme, sentamos para tomar um chope e falamos, entre
outras coisas, da violência no Rio.
Cláudio -não é esse seu nome-
disse-me que, hoje, não sabe se
tem mais medo do bandido ou da
polícia. Devo acrescentar que ele
nasceu na Baixada Fluminense e
ali morou até pouco tempo. Um
parente seu, que serve na Polícia
Militar, contou-lhe coisas que
agora passo a vocês, sem poder
atestar sua veracidade.
Contou, por exemplo, que policial militar que trabalha na rua
tem de descolar pelo menos R$ 60
por dia para pagar suas refeições
e a gasolina que consome para ir
trabalhar de carro, já que, se tomar um ônibus, está arriscado a
ser morto. Por isso mesmo, todos
querem ser escalados para trabalhar na fiscalização de veículos,
mas só é escalado quem der R$
200 ao encarregado da escalação.
Como cada patrulha tem uma cota mínima de multas e apreensão
de veículos por dia, completada a
cota, começa o achaque. Há cotas
igualmente para a apreensão de
drogas e armas: cumprida a exigência, tudo o que for apreendido
numa favela é vendido aos traficantes de outra favela. No fim do
mês, o comando do batalhão chama a imprensa e mostra as armas
e drogas apreendidas graças à
ação da polícia militar.
Segundo Cláudio, seu parente
PM contou-lhe que, certa noite,
na Barra da Tijuca, a patrulha
em que estava parou um carro
suspeito e encontrou dentro dele
fuzis, revólveres e até um maçarico. Os ocupantes do carro, ao serem apertados, confessaram que
iam assaltar um bingo da Barra,
cujo segurança lhes havia informado haver no cofre uns R$ 250
mil. E propuseram rachar a grana
com os policiais se estes os liberassem. "Está nos achando com cara
de otários? Vocês com essas armas e com o dinheiro vão é se
mandar. Nada feito."
Então os bandidos fizeram outra proposta: dariam aos policiais
dez milhas ali, na hora. Os policiais contrapropuseram 20 milhas. Os bandidos toparam, começaram a telefonar para tentar
conseguir a grana, mas, como não
conseguiram, foram levados presos para o quartel juntamente
com as armas e o maçarico. As armas foram completar a cota de
apreensão do mês e exibidas aos
jornalistas que noticiaram o fato:
"PM impede assalto a um bingo
da Barra".
Se a PM faz uma incursão numa favela e apreende grande
quantidade de dinheiro, drogas e
armas -teria contado o primo
dele-, parte das armas e da droga é levada para o quartel; a outra parte será vendida e o dinheiro, dividido entre os integrantes
da patrulha.
Acrescentou que, certa vez, participou da incursão numa favela
sob o comando de um aspirante a
oficial, que fazia sua estréia. Terminada a operação, ele deu ordem para que todas as armas,
drogas e dinheiro fossem postos
em sua viatura e levados para o
quartel.
- Essa não!, protestou um dos
policiais.
- Quem comanda sou eu, reagiu o aspirante. Vai tudo para o
quartel.
- Mata ele, falou outro soldado. Mata logo esse babaca!
O jovem oficial, embora assustado, manteve-se firme. Foi aí que
um outro soldado o chamou à
parte e lhe explicou que o pessoal
ganhava pouco para arriscar a vida naquelas operações. A compensação era ficar com parte do
que apreendiam.
- Mas isso é crime, respondeu
o aspirante.
- Então você escolhe. Para nós,
não custa nada te dar um tiro na
cabeça e dizer que foram os bandidos.
O tenente cedeu e foi advertido
de que, se os denunciasse, seria
executado. Não há muita escolha,
afirmou Cláudio, ou o cara se corrompe ou morre.
Mal podia acreditar no que ouvia e, por isso, perguntei se achava que tudo aquilo era de fato
verdade.
- Por que ele iria inventar tudo isso se também se confessa envolvido na coisa?
- Para você, isso é exceção ou é
a regra?
- Pelo que ele me disse, é a regra, embora dependa da ocasião.
- Não acredito que toda a PM
seja corrupta.
- Bem, há uns tantos, como os
evangélicos, que pedem para trabalhar no quartel, porque sabem
que, na rua, é difícil não entrar no
jogo dos outros.
E me contou outra história que
ouvira de seu parente. Uma patrulha saiu para uma operação
levando dois fuzis que pertenciam
à corporação. Ao chegarem à favela, o sargento que comandava a
patrulha ordenou que as armas
fossem postas em sua viatura,
mas um soldado protestou, alegando que os fuzis tinham sido
retirados do paiol sob sua responsabilidade. De nada adiantou e,
ao terminar a operação, os fuzis
haviam desaparecido.
O sargento então acusou o soldado que protestara de ter se
apossado das armas. Armou-se
uma discussão que terminou na
denúncia levada ao comando pelo soldado. Foram todos detidos
para averiguação e aberto um inquérito que concluiu pela culpabilidade do sargento. Ficou demonstrado que ele dera sumiço
nos fuzis para vendê-los a traficantes. Mas não foi nem preso
muito menos expulso da corporação. Continua lá, trabalhando, e
todo mês é descontado de seu soldo parte do valor dos fuzis.
- É como se ele tivesse comprado os fuzis a prestações, disse eu.
E ele, rindo:
- É mais ou menos isso.
Dois dias depois desta conversa,
policiais militares mataram aleatoriamente 30 pessoas na Baixada Fluminense, ao que tudo indica para advertir o comando que
ameaçou punir alguns deles.
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