São Paulo, segunda-feira, 05 de dezembro de 2005

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NELSON ASCHER

Pequenos países, grandes autores

Mal começara a bebericar meu Unicum (o "bitter" húngaro cuja receita secreta inspirou "Sunshine - O Despertar de um Século" de István Szabó), quando, oriundos do balcão em frente, ouvi sons familiares. Embora estivesse no bar de um hotel em Buda, a metade ocidental de Budapeste, as palavras entreouvidas eram latinas. Prestando atenção, constatei que se tratava de um rapaz português e de um jovem casal espanhol tentando, com sucesso mínimo, conversar. Quando não se entendiam, ensaiavam expressões francesas ou inglesas, sem, contudo, demonstrarem fluência nessas línguas. Não resisti a me intrometer, como intérprete, no bate-papo. Que fosse capaz de entendê-los e fazê-los me entender deixou-os curiosos acerca de minha procedência. Ainda assim, antes que a revelasse, nenhum dos três decifrou o enigma ao qual o fato de eu dominar o idioma local acrescentava novos mistérios.
Foi a prova mais decisiva que vi, ou melhor, ouvi de que, se os brasileiros podem obter o castelhano quase de graça, a recíproca não é verdadeira nem isso se aplica aos primos lusitanos. Os lingüistas explicam tal descompasso lembrando que o português do Brasil evoluiu mais devagar do que o peninsular, afastando-se, portanto, menos do castelhano. É graças também a esse arcaísmo que compreendemos, mais facilmente que os próprios espanhóis, sua literatura medieval. Outros já escreveram sobre os mal-entendidos gerados pelas nuances desencontradas ou desencontros nuançados das neolatinas, mas ninguém o fez tão deliciosamente quanto Paulo Rónai.
Um equívoco decorrente do acesso até certo ponto desimpedido à língua de nossos vizinhos é o sentimento de onipotência que, às vezes, me induz a supor que todas as demais da família estão, se tanto, a apenas um dicionário de distância da legibilidade perfeita. Se o castelhano, por que não o francês, o italiano etc.? Nem tanto ao céu nem tanto à terra... Que o aprendizado de ambas consuma menos tempo e esforço que o do inglês, do alemão, do russo, para nem mencionarmos o chinês, árabe ou náuatle, não significa que o garçom parisiense deduzirá no ato que o surrealista "copo de vento" pedido era somente um "copo de vinho". Tampouco faltam, no seio da família idiomática, peculiaridades curiosas. Enquanto nosso parente mais próximo, o galego, soa como se fosse castelhano, o catalão, incompreensível devido em parte à velocidade com que o falam, confunde-se, para quem o ouça de longe, com as cadências lusitanas.
Num ataque da onipotência descrita acima (e encorajado pela antologia recém-publicada de poemas de Lucian Blaga traduzidos por Caetano Galindo), resolvi, não estudar, mas sim tentar ler diretamente o romeno, idioma cuja sedução convém explicar. A Romênia faz fronteira a leste com a Hungria de meus ancestrais e, tendo se colocado do lado vitorioso durante a Primeira Guerra, foi, em seguida, premiada com a Transilvânia, que pertencia previamente à coroa de santo Estevão (a húngara). A partir de então, passei a ter parentes romenos e, entre esses, os que chegaram ao Brasil falavam em pouco tempo o português sem sombra de sotaque. O mesmo aconteceu com compatriotas deles que, já adultos, imigraram para cá, ou seja, ótimo, seu português não evocava em nada, digamos, o portunhol. Não obstante o português lhes ser tão acessível, o caminho oposto, para nós, é íngreme, principiando por um vocabulário cheio de estranhas raízes eslavas, turcas e magiares.
Minha atração, contudo, era menos pelo idioma em si que por sua literatura. Antes mesmo de examiná-la, elaborei a fantasia pessoal de uma entidade hipotética na qual, conciliando de algum modo os elementos díspares com os quais convivo desde sempre, se aliassem formas latinas e conteúdos centro-europeus. Procurando em sua poesia obras que, assemelhando-se às húngaras, tivessem sido redigidas numa língua parecida com o português, acabei encontrando não tanto o esperado ou desejado como o surpreendente.
Recentíssima, a poesia culta romena deu à luz seu primeiro grande autor, Mihai Eminescu (1850-89), séculos após a italiana, francesa, castelhana, catalã e portuguesa atingirem os respectivos ápices com Dante, Villon, Garcilaso de la Vega, Ramon Llull e Camões. Singularidades geográficas e históricas devem, todavia, ter contribuído para (se bem que tardiamente) convertê-lo no maior poeta romântico a se expressar numa língua neolatina. E, em termos de poesia, aqueles que vieram depois não desapontaram, nem qualitativa nem quantitativamente, o público. Em vez de enumerá-los, basta sugerir que nada ficam a dever a conterrâneos que, exilando-se, optaram por outros idiomas: Tristan Tzara, Mircea Eliade, E. M. Cioran, Ionescu etc. Tão interessante, aliás, quanto sua poesia moderna, é a maneira como os romenos a tratam, um modo que, repetindo-se nos países da região, consiste em lhe conceder lugar de relevo na história e política nacionais.
Por razões variadas, mas similares, romenos e húngaros, poloneses e tchecos, sérvios e búlgaros, com o intuito de fundamentar culturalmente disputas territoriais, reivindicações de autonomia, guerras de independência, se sentiram obrigados, na era do nacionalismo clássico, a provar que suas línguas não eram meros "dialetos" de camponeses iletrados, confiando essa tarefa a romancistas, poetas e tradutores. Exigências tais, que voltaram a se impor no decorrer do prolongado inverno soviético, não beiram a obsolescência nem sequer agora, na nova Europa, onde, sob a máscara do transnacionalismo pseudo-cosmopolita, ocultam-se as antigas ambições hegemônicas dos suspeitos habituais.


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