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NELSON ASCHER
Pequenos países, grandes autores
Mal começara a bebericar meu Unicum (o "bitter" húngaro cuja receita secreta
inspirou "Sunshine - O Despertar
de um Século" de István Szabó),
quando, oriundos do balcão em
frente, ouvi sons familiares. Embora estivesse no bar de um hotel
em Buda, a metade ocidental de
Budapeste, as palavras entreouvidas eram latinas. Prestando atenção, constatei que se tratava de
um rapaz português e de um jovem casal espanhol tentando,
com sucesso mínimo, conversar.
Quando não se entendiam, ensaiavam expressões francesas ou
inglesas, sem, contudo, demonstrarem fluência nessas línguas.
Não resisti a me intrometer, como
intérprete, no bate-papo. Que fosse capaz de entendê-los e fazê-los
me entender deixou-os curiosos
acerca de minha procedência.
Ainda assim, antes que a revelasse, nenhum dos três decifrou o
enigma ao qual o fato de eu dominar o idioma local acrescentava novos mistérios.
Foi a prova mais decisiva que
vi, ou melhor, ouvi de que, se os
brasileiros podem obter o castelhano quase de graça, a recíproca
não é verdadeira nem isso se aplica aos primos lusitanos. Os lingüistas explicam tal descompasso
lembrando que o português do
Brasil evoluiu mais devagar do
que o peninsular, afastando-se,
portanto, menos do castelhano. É
graças também a esse arcaísmo
que compreendemos, mais facilmente que os próprios espanhóis,
sua literatura medieval. Outros já
escreveram sobre os mal-entendidos gerados pelas nuances desencontradas ou desencontros nuançados das neolatinas, mas ninguém o fez tão deliciosamente
quanto Paulo Rónai.
Um equívoco decorrente do
acesso até certo ponto desimpedido à língua de nossos vizinhos é o
sentimento de onipotência que, às
vezes, me induz a supor que todas
as demais da família estão, se
tanto, a apenas um dicionário de
distância da legibilidade perfeita.
Se o castelhano, por que não o
francês, o italiano etc.? Nem tanto
ao céu nem tanto à terra... Que o
aprendizado de ambas consuma
menos tempo e esforço que o do
inglês, do alemão, do russo, para
nem mencionarmos o chinês, árabe ou náuatle, não significa que o
garçom parisiense deduzirá no
ato que o surrealista "copo de
vento" pedido era somente um
"copo de vinho". Tampouco faltam, no seio da família idiomática, peculiaridades curiosas. Enquanto nosso parente mais próximo, o galego, soa como se fosse
castelhano, o catalão, incompreensível devido em parte à velocidade com que o falam, confunde-se, para quem o ouça de longe,
com as cadências lusitanas.
Num ataque da onipotência
descrita acima (e encorajado pela
antologia recém-publicada de
poemas de Lucian Blaga traduzidos por Caetano Galindo), resolvi, não estudar, mas sim tentar ler
diretamente o romeno, idioma
cuja sedução convém explicar. A
Romênia faz fronteira a leste com
a Hungria de meus ancestrais e,
tendo se colocado do lado vitorioso durante a Primeira Guerra, foi,
em seguida, premiada com a
Transilvânia, que pertencia previamente à coroa de santo Estevão (a húngara). A partir de então, passei a ter parentes romenos
e, entre esses, os que chegaram ao
Brasil falavam em pouco tempo o
português sem sombra de sotaque. O mesmo aconteceu com
compatriotas deles que, já adultos, imigraram para cá, ou seja,
ótimo, seu português não evocava
em nada, digamos, o portunhol.
Não obstante o português lhes ser
tão acessível, o caminho oposto,
para nós, é íngreme, principiando
por um vocabulário cheio de estranhas raízes eslavas, turcas e
magiares.
Minha atração, contudo, era
menos pelo idioma em si que por
sua literatura. Antes mesmo de
examiná-la, elaborei a fantasia
pessoal de uma entidade hipotética na qual, conciliando de algum
modo os elementos díspares com
os quais convivo desde sempre, se
aliassem formas latinas e conteúdos centro-europeus. Procurando
em sua poesia obras que, assemelhando-se às húngaras, tivessem
sido redigidas numa língua parecida com o português, acabei encontrando não tanto o esperado
ou desejado como o surpreendente.
Recentíssima, a poesia culta romena deu à luz seu primeiro
grande autor, Mihai Eminescu
(1850-89), séculos após a italiana,
francesa, castelhana, catalã e portuguesa atingirem os respectivos
ápices com Dante, Villon, Garcilaso de la Vega, Ramon Llull e
Camões. Singularidades geográficas e históricas devem, todavia,
ter contribuído para (se bem que
tardiamente) convertê-lo no
maior poeta romântico a se expressar numa língua neolatina. E,
em termos de poesia, aqueles que
vieram depois não desapontaram, nem qualitativa nem quantitativamente, o público. Em vez
de enumerá-los, basta sugerir que
nada ficam a dever a conterrâneos que, exilando-se, optaram
por outros idiomas: Tristan Tzara, Mircea Eliade, E. M. Cioran,
Ionescu etc. Tão interessante,
aliás, quanto sua poesia moderna, é a maneira como os romenos
a tratam, um modo que, repetindo-se nos países da região, consiste em lhe conceder lugar de relevo
na história e política nacionais.
Por razões variadas, mas similares, romenos e húngaros, poloneses e tchecos, sérvios e búlgaros,
com o intuito de fundamentar
culturalmente disputas territoriais, reivindicações de autonomia, guerras de independência, se
sentiram obrigados, na era do nacionalismo clássico, a provar que
suas línguas não eram meros
"dialetos" de camponeses iletrados, confiando essa tarefa a romancistas, poetas e tradutores.
Exigências tais, que voltaram a se
impor no decorrer do prolongado
inverno soviético, não beiram a
obsolescência nem sequer agora,
na nova Europa, onde, sob a máscara do transnacionalismo pseudo-cosmopolita, ocultam-se as
antigas ambições hegemônicas
dos suspeitos habituais.
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