São Paulo, sábado, 01 de outubro de 2005

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ERUDITO/CRÍTICA

São Paulo descobre os véus da música de Valentina Lisitsa

ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA

Depois de ter aplaudido só diplomaticamente a "Sinfonia n� 41" de Mozart (1756-91), que o maestro tcheco Libor Pesek regeu na abertura do programa, a platéia explodiu em "bravos" para a pianista ucraniana Valentina Lisitsa, solista do "Concerto n� 1 para Piano e Orquestra" de Rachmaninov (1873-1943). Talvez não chegasse a ser a voz de Deus, mas a voz daquele povo deixava clara a diferença entre as duas músicas na interpretação da Osesp, em concerto realizado anteontem na Sala São Paulo.
Radicado na Inglaterra há muitos anos, maestro laureado da Filarmônica Real de Liverpool, Pesek é um regente sereno e soberano, sem paciência para fogos de artifício, mas também sem muitos artifícios de fogo. Seu Mozart foi, para os padrões de hoje (educados pelas pesquisas de música antiga), quase inacreditavelmente lento. Que a própria orquestra parecia surpresa ficou evidente nas entradas: não foi uma nem duas vezes que as cordas, ou as trompas, ou algum sopro caiu na música antes do tempo, como se fosse impossível esperar.

Sutilezas e delicadezas
No mês passado, a Filarmônica de Israel fez a mesma sinfonia na mesma sala, com Zubin Mehta regendo o último movimento no limite da velocidade. As proezas de contraponto, com Pesek, ficam didaticamente mais claras; mas será que a vertigem, ali, não é parte do efeito?
Tudo isso virou assunto antigo nem bem a loiríssima pianista atacou o primeiro tema do Rachmaninov. Muito menos conhecido do que os "Concertos" de números 2 e 3, o primeiro foi escrito em 1891, quando o compositor ainda estava no conservatório. A versão que se toca é uma revisão feita em 1917; mas se imagina que o que foi revisto diga mais respeito à orquestração do que propriamente à estrutura.
Para além dos encantamentos da música, o que mais espanta é o quanto da arte de Rachmaninov já se faz presente desde o início. Como se tudo o que lhe coubesse, depois, fosse a exploração desse núcleo de música, infinitamente fissionável. Até pequenas figuras (como as notinhas repetidas nos trompetes, para ficar só nelas), coisas que parecem detalhes nesse opus 1, vão reaparecer, por exemplo, nas "Danças Sinfônicas", compostas 50 anos mais tarde. Rachmaninov se achou a si mesmo na adolescência, e nunca mais precisou de outro interlocutor.
Na cadência do primeiro movimento, Lisitsa honrou a escola russa e fez tonitroar os baixos do Steinway. Mas foi quase o único momento de efusões tão violentas. Porque ela é muito mais uma pianista de sutilezas e delicadezas, vestindo sugestivos véus na música, assim como sugestivos tules nas costas.
Depois disso (e do lindo bis, uma canção de Schubert transcrita por Liszt), não era preciso mais nada. Mas Pesek ainda voltaria com a Osesp para tocar o poema sinfônico "Taras Bulba", de seu conterrâneo Janácek (1854-1928). Muito à vontade nos protomodernismos, regendo de cor, pintou exuberâncias numa sala que já tinha esvaziado de gente, mas não de música.


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