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"UMA QUESTÃO PESSOAL"
Em nome de um pai, em nome de um filho
ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA
"Para Bird, todos os tangos pareciam iguais." Não
é a sentença que se espera num
romance japonês, mas quase nada é o que se espera em "Uma
Questão Pessoal". A começar pelo
famoso bebê -famoso tanto por
conta do pai-autor, Prêmio Nobel
em 1994, quanto do pai-narrador,
nesse romance de 30 anos antes.
A criança nasce com graves problemas cerebrais, aparentemente
limitada às funções vegetativas. Já
o pai se vê passando por uma
olimpíada de problemas afetivos,
sexuais e morais, ao longo do romance. Parecem pequenos, comparados à intuída grandeza do bebê, bem como à comprovada
grandeza humana do pai dos dois,
dentro e fora da literatura, o escritor japonês Kenzaburo Oe, 67.
Todos os tangos parecem iguais
para o alcoólatra professor de
cursinho, enredado com uma velha amiga enquanto a mulher
convalesce do parto e seu bebê está prestes a perder a vida.
Mas não há nada de tango na
prosa de Kenzaburo Oe. Uma de
suas influências confessas é Rabelais (1494-1553), que lhe ensinou
"a importância dos princípios
materiais" na literatura, a "correspondência entre elementos cósmicos, sociais e físicos" e a "sobreposição das paixões da morte e do
renascimento". Tudo isso trabalhado da perspectiva de um escritor "periférico", como ele disse na
palestra do Prêmio Nobel.
O título dessa palestra, aliás, já
define alguns parâmetros de leitura: "Japão, o Ambíguo e Eu"; alterando o título de seu predecessor
japonês no pódio, Kawabata, que
discursou em 1968 sobre "Japão, o
Belo e Eu". A ambiguidade é uma
marca dessa literatura onde ninguém escapa de culpas, mesmo
sem ter culpa nenhuma. Ela se redobra nas sugeridas dificuldades
de encontrar uma alternativa própria entre a cultura moderna e a
tradicional, entre o Ocidente (que
não é só do capital, mas da literatura) e um Oriente (jamais reduzido a samurais e cerejeiras).
Parece muito como pano de
fundo para um romance de 200
páginas. Mas não é propriamente
pano de fundo. É o coração das
trevas, no fundo daquela África
que Bird tanto quer conhecer,
desde a primeira página, e pela
qual há de viajar muito, sem sair
do lugar. Para quem não entende
japonês, parte da viagem decerto
é indescritível. "Procurava uma
espécie de sintaxe que não se enquadra na língua japonesa. (...)
Estava escrevendo com uma intenção extremamente destrutiva", diria Oe em 1995, lembrando
esses primeiros livros ("World Literature Today", v. 69). Não há
como cobrar da boa tradução brasileira, de Shintaro Hayashi, que
nos mostre o que seria a sintaxe
destruidora do japonês de Oe.
Com o que se tem, pode-se imaginar a violência verbal, comparável
às violências de sentido desse livro para espíritos fortes.
Tanto maior a violência quanto
mais prosaica a circunstância e
mais natural e neutra a descrição.
Toda a repulsa do pai pelo filho se
faz sentir numa simples expressão
como "cor de camarão cozido".
Que o escritor sabe muito bem o
que está fazendo fica claro não só
pelo domínio, nada artificioso,
das referências (Apollinaire,
Yeats, Blake, Mark Twain e outros), mas pela variedade de discursos (direto, indireto, indireto
livre etc.) e o engenho da forma.
Não causa surpresa que um leitor
dos estudos de Bakhtin sobre Rabelais tenha interesse na polifonia; mas a habilidade de Oe para
construir pequenas e grandes tramas em contraponto com a principal é uma virtude incomum.
Boa parcela do desconforto afetivo de quem lê será compensada,
então, pelo interesse moral e pelas
seduções do artesanato. A sedução da vida caída, o fascínio pelo
reino dos suicidas, a antibeleza
dos destroçados têm também sua
dose de atração. Mas todos os tangos são iguais e, desse ponto de
vista, tanto faz cantar em japonês.
Experimentar todos os sofrimentos humanos e aproximar a literatura da vida é uma missão antiga e
universal (o risco perene é o do
sentimentalismo.)
Verdade que a vida se aproxima
da literatura de modo muito particular, nesta "Questão Pessoal".
O final da história, fora do livro,
ficou conhecido. O filho doente
de Oe chama-se Hikari ("Luz").
Tornou-se compositor. Com isso,
três romances posteriores tratando da relação entre os dois chegaram a um termo em que o próprio
Oe considera definitivo. Não é
mais preciso escrever.
A imagem lembrada, muito rapidamente no fim, de um trem de
soldados mutilados voltando da
Guerra da Coréia, cria mais um
contraponto notável e reinterpreta o que foi narrado sob outra luz.
Todo o drama pessoal do narrador ganha acentos de outra compaixão, nem maior nem mais urgente do que as paixões de uma
paternidade difícil, mas igualmente impossível de ser contornada. Quarenta anos depois do
romance, a "questão pessoal" ressurge com urgência inesperada e
torna mais que preciso ler um escritor como Kenzaburo Oe.
Uma Questão Pessoal
Autor: Kenzaburo Oe
Tradução: Shintaro Hayashi
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 33 (224 págs.)
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