São Paulo, Segunda-feira, 20 de Dezembro de 1999


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Menos governo, mais povo. Ou "Caminha, leitao!"

GUSTAVO IOSCHPE
Colunista da Folha

De todos os tipos de amigos problemáticos com quem eu, como bom ouvidor, tenho convivido, os mais interessantes são os filhos de pais superprotetores que um dia acordam aos vinte e poucos anos de idade e se dão conta de que não sabem passar uma camisa, fritar um bife ou espremer uma espinha nas costas sem a ajuda dos progenitores (ou de suas extensões, nas formas de irmãos, companheiros ou cônjuges igualmente dominadores). Aí bate aquele desespero, e junto com a angústia vem a raiva dos pais. É um sentimento ambíguo, porque se sabe que os pais não são assim por maldade, mas, sim, por um amor desgovernado que acaba prejudicando. O que amaina o sofrimento é que os filhos crescem, saem de casa, e a vida madrasta se encarrega de afiar seus instintos de sobrevivência. Uns sofrem mais, outros menos; uns amadurecem mais cedo, outros mais tarde, mas no fim acabam se ajeitando.
Com povos, infelizmente, não é assim. Os mecanismos de dominação de quem está por cima em uma estrutura social são mais sutis e eficazes do que a mera chantagem emocional e corte de mesada de pais. No caso de nações, os tutores nem sempre têm boas intenções em relação a seus inferiores e, em grande parte dos casos, são motivados por um ganho -político e econômico-, sufocando quem se deixa pisar.
O Brasil é um caso clássico de Estado paternalista, onde a iniciativa popular foi sufocada, e há uma distorção que faz com que a classe dominante deixe de ser agente daqueles que a elegeram e passe a amestradora. Lincoln dizia que a democracia é o regime do povo, pelo povo e para o povo. Na democracia brasileira, o povo é massa de manobra da elite, pela elite e para a elite.
Sempre causa certo espanto a quantidade de áreas em que o povo brasileiro espera a intervenção do governo. A Constituição, por exemplo, que, na maioria dos países, serve para dar as linhas mestras da forma de governo da nação, no Brasil, promete educação, moradia, trabalho pleno, previdência e ovinho de Páscoa. Se a inflação subiu, se os salários estão baixos, se os alunos não pagam a mensalidade das escolas, se os planos de saúde privados não são bons, se a programação da TV não está na qualidade desejada, o que se faz? Em países de forte tradição democrático-popular, senta-se e negocia-se. No Brasil, alguém berra e pede a intervenção das "otoridades". O que isso causa é um poder público hipertrofiado, esparramado por tudo, tomando conta do que não devia e não deixando espaço para quem é de direito tomar conta, que é a população.
Se culpasse só o governo, aqui, estaria entrando na mesma onda "dependista" daqueles que acuso. Em qualquer relação neurótica, a culpa é sempre de ambas as partes. No Brasil, a sociedade que reclama da inépcia de seus governantes é a mesma que se abstém de qualquer ação concreta para mudar o que não lhe apraz. Faz uma cara de nojo, solta um gritinho de espanto e depois volta ao seu estado de resignação malemolente que faz com que eleja os mesmos maus-caracteres a cada eleição.
No Brasil, inclusive, deu-se nome diferente ao que deveria ser sinônimo de povo: chama-se "a sociedade civil". Quando alguém resolve fazer algo por seu país e sua gente -nada demais-, brotam lágrimas nos olhos dos mais sensíveis, e um ufanista apaixonado enche o peito de esperança e diz: "É a sociedade civil em ação". Coisas de um país tão carcomido em sua fábrica social que honestidade virou virtude, e não obrigação, e senso cívico é sinal de heroísmo.
E o que fazer? Em primeiro lugar, pedir aos santos e gnomos que nos enviem lideranças capazes de atuar para seus compatriotas, e não para satisfazer seu desejo pessoal de poder; alguém que entenda que um país se faz com um governo forte, sim, mas não tão forte que massacre a iniciativa popular. Como isso deve acontecer lá pelo dia 31 de fevereiro, o negócio é ir boicotando a (i)legitimidade desses governantes, substituindo a espera do auxílio oficial por um plano de ação concreto e enérgico da "sociedade civil" -você aí, ô, da poltrona. Como disse a minha irmã, ainda criança, ao notar espantada um porco prostrado com maçã na boca na mesa de jantar: "Caminha, leitao!".


Gustavo Ioschpe, 22, mora em Londres. E-mail: desembucha@uol.com.br



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