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Menos governo, mais povo. Ou "Caminha, leitao!"
GUSTAVO IOSCHPE
Colunista da Folha
De todos os tipos de amigos
problemáticos com quem eu, como bom ouvidor, tenho convivido, os mais interessantes são os
filhos de pais superprotetores
que um dia acordam aos vinte e
poucos anos de idade e se dão
conta de que não sabem passar
uma camisa, fritar um bife ou espremer uma espinha nas costas
sem a ajuda dos progenitores (ou
de suas extensões, nas formas de
irmãos, companheiros ou cônjuges igualmente dominadores).
Aí bate aquele desespero, e junto
com a angústia vem a raiva dos
pais. É um sentimento ambíguo,
porque se sabe que os pais não
são assim por maldade, mas,
sim, por um amor desgovernado
que acaba prejudicando. O que
amaina o sofrimento é que os filhos crescem, saem de casa, e a
vida madrasta se encarrega de
afiar seus instintos de sobrevivência. Uns sofrem mais, outros
menos; uns amadurecem mais
cedo, outros mais tarde, mas no
fim acabam se ajeitando.
Com povos, infelizmente, não
é assim. Os mecanismos de dominação de quem está por cima
em uma estrutura social são mais
sutis e eficazes do que a mera
chantagem emocional e corte de
mesada de pais. No caso de nações, os tutores nem sempre têm
boas intenções em relação a seus
inferiores e, em grande parte dos
casos, são motivados por um ganho -político e econômico-,
sufocando quem se deixa pisar.
O Brasil é um caso clássico de
Estado paternalista, onde a iniciativa popular foi sufocada, e há
uma distorção que faz com que a
classe dominante deixe de ser
agente daqueles que a elegeram e
passe a amestradora. Lincoln dizia que a democracia é o regime
do povo, pelo povo e para o povo. Na democracia brasileira, o
povo é massa de manobra da elite, pela elite e para a elite.
Sempre causa certo espanto a
quantidade de áreas em que o
povo brasileiro espera a intervenção do governo. A Constituição, por exemplo, que, na maioria dos países, serve para dar as
linhas mestras da forma de governo da nação, no Brasil, promete educação, moradia, trabalho pleno, previdência e
ovinho de Páscoa. Se a inflação
subiu, se os salários estão baixos,
se os alunos não pagam a mensalidade das escolas, se os planos
de saúde privados não são bons,
se a programação da TV não está
na qualidade desejada, o que se
faz? Em países de forte tradição
democrático-popular, senta-se e
negocia-se. No Brasil, alguém
berra e pede a intervenção das
"otoridades". O que isso causa é
um poder público hipertrofiado,
esparramado por tudo, tomando
conta do que não devia e não deixando espaço para quem é de direito tomar conta, que é a população.
Se culpasse só o governo, aqui,
estaria entrando na mesma onda
"dependista" daqueles que acuso. Em qualquer relação neurótica, a culpa é sempre de ambas as
partes. No Brasil, a sociedade que
reclama da inépcia de seus
governantes é a mesma que
se abstém de qualquer ação
concreta para mudar o que
não lhe apraz. Faz uma cara de
nojo, solta um gritinho de espanto e depois volta ao seu estado de
resignação malemolente que faz
com que eleja os mesmos maus-caracteres a cada eleição.
No Brasil, inclusive, deu-se
nome diferente ao que deveria
ser sinônimo de povo: chama-se
"a sociedade civil". Quando alguém resolve fazer algo por seu
país e sua gente -nada demais-, brotam lágrimas nos
olhos dos mais sensíveis, e um
ufanista apaixonado enche o peito de esperança e diz: "É a sociedade civil em ação". Coisas de
um país tão carcomido em sua
fábrica social que honestidade
virou virtude, e não obrigação, e
senso cívico é sinal de heroísmo.
E o que fazer? Em primeiro lugar, pedir aos santos e gnomos
que nos enviem lideranças capazes de atuar para seus compatriotas, e não para satisfazer seu
desejo pessoal de poder; alguém
que entenda que um país se faz
com um governo forte, sim, mas
não tão forte que massacre a iniciativa popular. Como isso deve
acontecer lá pelo dia 31 de fevereiro, o negócio é ir boicotando a
(i)legitimidade desses governantes, substituindo a espera do auxílio oficial por um plano de ação
concreto e enérgico da "sociedade civil" -você aí, ô, da poltrona. Como disse a minha irmã,
ainda criança, ao notar espantada um porco prostrado com maçã na boca na mesa de jantar:
"Caminha, leitao!".
Gustavo Ioschpe, 22, mora em Londres. E-mail:
desembucha@uol.com.br
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