São Paulo, domingo, 28 de maio de 2000


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OLIMPÍADA 2000
Modalidade de origem coreana faz estréia olímpica em Sydney-2000 e encara como principal desafio transformar seus mestres em técnicos e fazer seus discípulos competirem como atletas
Taekwondo quer chutar a fama de "panelinha'

RODRIGO BERTOLOTTO
DA REPORTAGEM LOCAL


O presidente da Confederação Brasileira de Taekwondo, o coreano Young Min Kim, já derrubou a Xuxa com seus golpes. É que, antes de ser chefe no esporte, Kim foi um astro infantil nos anos 80, quando participava do ""Cometa Alegria", da extinta TV Manchete.
O sucesso de suas lições na TV era tanto que ele ajudou muitas vezes o "Cometa Alegria" a superar no Ibope o programa global ""Xou da Xuxa". E a atração da Manchete fez Kim virar até herói de história em quadrinhos.
No gibi, ele se tornava o personagem Mestre Kim, uma versão carioca de Bruce Lee. Acompanhado da voluptuosa Lady Dragon, ele combatia, na base do pontapé, vilões como Mestre Sombra e os Ninjas Satânicos.
""Era tudo ficção: tinha namorada loirinha, viajava pelo mundo e derrotava até monstro. Minha vida normal era a de um professor", explica Kim, com português escasso apesar de 25 anos no Brasil.
Mas, agora que Kim é dirigente, seu desafio é muito maior do que nos quadrinhos: eliminar todo o resquício de seita presente ainda na modalidade, que faz sua estréia olímpica em Sydney-2000.
""Tem muita gente que pensa que o discípulo deve seguir cegamente seu mestre. Eles levam o esporte como uma panelinha. Precisamos de atletas e técnicos. Não queremos mais discípulos e mestres", afirma Kim.
Técnico da seleção, Carlos Negrão experimenta atualmente essa lógica sectária. Por estar treinando Carmem Carolina, única atleta nacional a obter a vaga olímpica, ele foi alvo de denúncias anônimas em uma carta enviada ao Comitê Olímpico Brasileiro.
""Aposto que essa carta foi escrita por alguém que vive uma serventia estúpida a seu mestre. Querem ir à Austrália no meu lugar e fazem isso. É uma deturpação", diz Negrão.
Por seu lado, Carmem chegou a chorar sabendo da pressão para substituir seu treinador. ""É uma situação revoltante. As pessoas não acreditavam em mim e, agora, se aproximam e falam que estão do meu lado. É muita falsidade", diz a atleta.
O taekwondo obedece uma doutrina derivada do budismo. Em toda academia, há sempre dois quadros na parede. Em um deles, estão as condutas básicas: cortesia, integridade, perseverança, autocontrole e, por último, possuir um ""espírito indomável".
O outro quadro é reservado para o juramento -o segundo mandamento diz: ""Respeitar o instrutor e meus superiores".

Pátria, religião e exército
Apesar da apresentação como arte marcial milenar, o taekwondo surgiu mesmo em 1955.
Saídos da Guerra da Coréia (1950-1953), os sul-coreanos unificaram as regras de luta sob uma filosofia que misturava religião, nacionalismo e militarismo.
O patriotismo está, por exemplo, nas cores dos competidores, as mesmas do globo na bandeira sul-coreana: um é vermelho (hong), o outro, azul (chung).
A influência budista é clara, por exemplo, nos nomes dos movimentos. Uma série deles se chama gum-kang (montanha), com golpes sólidos e extensos. Outra se intitula iliô (vento), de ações aéreas e rápidas.
No momento de criação do taekwondo, buscou-se eliminar toda e qualquer influência das lutas japonesas, afinal o Japão invadira o país de 1910 até 1945 e proibira as técnicas locais.
A partir de 1966, com apoio do governo sul-coreano, centenas de mestres foram enviados a vários países. No Brasil, eles chegaram entre 1969 e 1970. A irradiação deu tão certo que em 1973 já estava fundada a Federação Internacional de Taekwondo.
Com regras universais e unificadas, essa luta asiática conseguiu superar na corrida olímpica, por exemplo, o caratê, modalidade com muitas versões e regras.
Foi esporte de exibição em Seul-1988 e Barcelona-1992. E, graças também ao lobby de Un Yong Kim, vice-presidente do COI (Comitê Olímpico Internacional), virou esporte valendo medalhas.
Para o técnico Carlos Negrão, porém, o esporte no Brasil deve se desvincular dos moldes coreanos.
""O Brasil detém a técnica mais apurada do futebol mundial, mas ninguém quer copiar a organização daqui. Seria o caos. O mesmo acontece no taekwondo. Os coreanos dão os golpes mais plásticos, mas não dá para seguir a mentalidade deles", afirma.
Para ele, o exemplo a ser seguido é o da Espanha, segunda potência no esporte.
Tanto é assim que a equipe brasileira fez um estágio no Centro de Alto Rendimento, em Sant Cugat, perto de Barcelona.
A escola espanhola dá prioridade à força física, com os atletas fazendo muita musculação e exercícios de resistência.
O técnico brasileiro e duas atletas (Carmem Carolina e Aparecida Santana) treinaram com a seleção espanhola e ""espionaram" o planejamento aplicado por lá. No estágio, deram conta do abismo existente entre a preparação olímpica espanhola e a brasileira.
Enquanto os ibéricos têm alojamento, alimentação, acompanhamento médico e treinamento bancado pelo governo, comitê olímpico e um canal de TV, os brasileiros vivem e treinam, literalmente, de favor.
O maior exemplo é o da olímpica Carmem Carolina: ela deixou sua cidade, Londrina, e mora desde janeiro no apartamento de Negrão, em São Paulo. Para alojá-la, o técnico teve de despejar sua filha, Marina, 3, de seu quarto.
A atleta dorme entre os brinquedos da menina: bonecas, ursinhos, um fogãozinho, os Sete Anões e um triciclo. O berço da filha foi para o quarto do casal.
""Marina não ficou enciumada por perder seu lugar na casa. Ela parece entender a situação", afirma a mãe, Márcia.
Cenas de ciúme de verdade surgiram quando o Vasco da Gama apareceu neste ano como o primeiro patrocinador da modalidade no país.
O clube carioca, que banca 22 atletas (Carmem incluída), despertou inveja nas tradicionais academias, dizem os técnicos Negrão e Ricardo Andrade.
Há duas semanas, durante o Campeonato Carioca, Andrade foi agredido por um treinador irritado pela ida de um seu discípulo para o Vasco. Ele estava sentado, vendo uma luta, quando foi atingido por um soco, que quebrou seu óculos. Sua córnea foi ferida e músculos da face, cortados. Não havia polícia no local.
""É a reação da incompetência, da inveja. Não existe essa história de roubar atletas dos outros. Existe transferência legal", diz Andrade. ""Isso acontece porque há muita desorganização. O problema é que os brasileiros não assumiram ainda a responsabilidade, e os coreanos seguem mandando", completa.
Negrão concorda. ""A atitude é retrógrada, antiga. Tanta resistência é sinal de ciúme em um ambiente amadorístico", afirma.
Um dos resultados de tanta desorganização foi a emigração dos principais lutadores locais -o último foi Belmiro Giordani, que se mudou para os EUA.
Ele ficou com a 5� colocação no Mundial. A delegação brasileira chegou à Croácia, local de competição, sem ter reserva de hotel. Resultado: os atletas esperaram horas na calçada enquanto os técnicos buscavam hospedagem.


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