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ELEIÇÕES ARMADAS
Iraquiano diz que voto é só base para democracia futura
JOÃO BATISTA NATALI
DA REPORTAGEM LOCAL
A assembléia a ser eleita hoje será vista pelos iraquianos como
pouco legítima. Mesmo assim, o
governo que dela sair deverá ter a
habilidade de abrir o diálogo com
todas as forças internas -inclusive com a insurgência- caso
queira implantar a democracia.
É a opinião de Abbas Mehdi, sociólogo iraquiano e professor da
Universidade Saint Cloud, em
Minnesota (EUA). Ele é também
fundador e presidente da União
de Iraquianos Independentes,
grupo de reflexão para que prevaleça um modelo democrático.
A seu ver, a curto prazo, o Iraque continuará a enfrentar turbulências. Mas, "dentro de cinco ou
dez anos", tem tudo para se tornar uma vitrina da democracia no
mundo árabe.
Eis os principais trechos de sua
entrevista à Folha.
Folha - As eleições farão a democracia avançar no mundo árabe?
Abbas Mehdi - Os ventos democráticos sopram no mundo árabe
de forma ainda discreta. Há coisas
acontecendo na Tunísia, em Marrocos, na Jordânia. Nada comparável à democratização dos anos
80 e 90 na América Latina e no
Leste Europeu. Com o Iraque é diferente. Creio que, em cinco ou
dez anos, o Iraque poderá ser uma
vitrina da democracia na região.
Folha - E por que não agora?
Mehdi - Os próximos anos serão
muito difíceis para o país, em razão de um erro fundamental cometido pelos EUA.
Ao removerem Saddam Hussein, eles destruíram as instituições do Estado. Não temos governo, segurança. É preciso recomeçar tudo de novo.
Folha - Qual é a motivação dos
grupos internos de pressão?
Mehdi - O Iraque permaneceu
sob uma ditadura centralizada
durante três décadas. Mas, em lugar de uma democracia, o que se
vê agora são lideranças religiosas
e tribais que tentam impor sua
própria agenda. A pressão passou
a ter embasamento religioso.
Folha - Assim, as eleições serão o
primeiro passo para a democracia
laica ou para o caos?
Mehdi - Se os iraquianos acreditarem que ela foi democrática e
que a assembléia eleita tem legitimidade, uma etapa importante
será cumprida. Mas, se prevalecer
a impressão de ilegitimidade, os
conflitos internos prosseguirão.
Folha - Como imaginar uma eleição legítima sem os sunitas?
Mehdi - É um obstáculo, tanto
quanto o boicote de alguns grupos xiitas. Há outros problemas.
O principal deles está na ausência,
dentro da sociedade iraquiana, de
uma classe média ativa. Viria dela
a maior capacitação, a maior
compreensão das vantagens do
processo democrático. Só a classe
média saberia que a unidade do
país se dará apenas em bases seculares, sem um pano de fundo
religioso ou étnico.
Folha - O sr. está pessimista.
Mehdi - Não espero muito dessas eleições. Creio que as forças
externas (os EUA, os terroristas
muçulmanos) vão manipular os
resultados para tirar proveito.
Folha - Em 1932, os britânicos
promoveram eleições no Iraque.
Ocorreu na época o mesmo?
Mehdi - Foram eleições relativamente livres. Mas depois os britânicos, que mantinham o Iraque
como protetorado, escolheram
um governo alheio à vontade popular. Destruíram as eleições.
Folha - Os americanos seriam imprudentes de fazer o mesmo?
Mehdi - Os americanos não têm
escolha. Precisam no Iraque de
um governo que lhes seja amigável para avançar no processo de
instituição de uma democracia.
Folha - Mesmo sem legitimidade?
Mehdi - Não há uma boa opção.
Há uma opção menos ruim. É
com isso que deveremos contar.
Folha - A insurgência não se aproveitará da situação para incrementar seus atentados?
Mehdi - Sem dúvida. Mas caberá
ao novo governo convocar essas
forças ao diálogo. É impossível
derrotá-las no plano militar.
Folha - Uma solução política não
supõe a retirada das forças estrangeiras de ocupação?
Mehdi - Foi justamente a reivindicação apresentada há quinze
dias por líderes sunitas que foram
recebidos na embaixada americana. Eles querem um cronograma
para a retirada das tropas. É preciso que, em algum momento, se faça essa concessão ao sentimento
de base nacionalista.
Folha - O sr. crê que a insurgência
seja medianamente popular?
Mehdi - A insurgência é iraquiana. É parte do Iraque. São numericamente marginais os terroristas estrangeiros.
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