São Paulo, domingo, 30 de janeiro de 2005

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ELEIÇÕES ARMADAS

Iraquiano diz que voto é só base para democracia futura

JOÃO BATISTA NATALI
DA REPORTAGEM LOCAL

A assembléia a ser eleita hoje será vista pelos iraquianos como pouco legítima. Mesmo assim, o governo que dela sair deverá ter a habilidade de abrir o diálogo com todas as forças internas -inclusive com a insurgência- caso queira implantar a democracia.
É a opinião de Abbas Mehdi, sociólogo iraquiano e professor da Universidade Saint Cloud, em Minnesota (EUA). Ele é também fundador e presidente da União de Iraquianos Independentes, grupo de reflexão para que prevaleça um modelo democrático.
A seu ver, a curto prazo, o Iraque continuará a enfrentar turbulências. Mas, "dentro de cinco ou dez anos", tem tudo para se tornar uma vitrina da democracia no mundo árabe.
Eis os principais trechos de sua entrevista à Folha.

Folha - As eleições farão a democracia avançar no mundo árabe?
Abbas Mehdi -
Os ventos democráticos sopram no mundo árabe de forma ainda discreta. Há coisas acontecendo na Tunísia, em Marrocos, na Jordânia. Nada comparável à democratização dos anos 80 e 90 na América Latina e no Leste Europeu. Com o Iraque é diferente. Creio que, em cinco ou dez anos, o Iraque poderá ser uma vitrina da democracia na região.

Folha - E por que não agora?
Mehdi -
Os próximos anos serão muito difíceis para o país, em razão de um erro fundamental cometido pelos EUA.
Ao removerem Saddam Hussein, eles destruíram as instituições do Estado. Não temos governo, segurança. É preciso recomeçar tudo de novo.

Folha - Qual é a motivação dos grupos internos de pressão?
Mehdi -
O Iraque permaneceu sob uma ditadura centralizada durante três décadas. Mas, em lugar de uma democracia, o que se vê agora são lideranças religiosas e tribais que tentam impor sua própria agenda. A pressão passou a ter embasamento religioso.

Folha - Assim, as eleições serão o primeiro passo para a democracia laica ou para o caos?
Mehdi -
Se os iraquianos acreditarem que ela foi democrática e que a assembléia eleita tem legitimidade, uma etapa importante será cumprida. Mas, se prevalecer a impressão de ilegitimidade, os conflitos internos prosseguirão.

Folha - Como imaginar uma eleição legítima sem os sunitas?
Mehdi -
É um obstáculo, tanto quanto o boicote de alguns grupos xiitas. Há outros problemas. O principal deles está na ausência, dentro da sociedade iraquiana, de uma classe média ativa. Viria dela a maior capacitação, a maior compreensão das vantagens do processo democrático. Só a classe média saberia que a unidade do país se dará apenas em bases seculares, sem um pano de fundo religioso ou étnico.

Folha - O sr. está pessimista.
Mehdi -
Não espero muito dessas eleições. Creio que as forças externas (os EUA, os terroristas muçulmanos) vão manipular os resultados para tirar proveito.

Folha - Em 1932, os britânicos promoveram eleições no Iraque. Ocorreu na época o mesmo?
Mehdi -
Foram eleições relativamente livres. Mas depois os britânicos, que mantinham o Iraque como protetorado, escolheram um governo alheio à vontade popular. Destruíram as eleições.

Folha - Os americanos seriam imprudentes de fazer o mesmo?
Mehdi -
Os americanos não têm escolha. Precisam no Iraque de um governo que lhes seja amigável para avançar no processo de instituição de uma democracia.

Folha - Mesmo sem legitimidade?
Mehdi -
Não há uma boa opção. Há uma opção menos ruim. É com isso que deveremos contar.

Folha - A insurgência não se aproveitará da situação para incrementar seus atentados?
Mehdi -
Sem dúvida. Mas caberá ao novo governo convocar essas forças ao diálogo. É impossível derrotá-las no plano militar.

Folha - Uma solução política não supõe a retirada das forças estrangeiras de ocupação?
Mehdi -
Foi justamente a reivindicação apresentada há quinze dias por líderes sunitas que foram recebidos na embaixada americana. Eles querem um cronograma para a retirada das tropas. É preciso que, em algum momento, se faça essa concessão ao sentimento de base nacionalista.

Folha - O sr. crê que a insurgência seja medianamente popular?
Mehdi -
A insurgência é iraquiana. É parte do Iraque. São numericamente marginais os terroristas estrangeiros.

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