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ELEIÇÕES ARMADAS
"O quadro caótico do Iraque foge à definição de democracia"
KENNETH WALTZ
"A boa notícia é que maioria dos xiitas e curdos querem a democratização"
JAMES LINDSAY
Reação de vencedores e perdedores vai definir o futuro da estabilização do país
Eleições iraquianas não são legítimas, dizem especialistas
DA REDAÇÃO
AS ELEIÇÕES LEGISLATIVAS IRAQUIANAS, que
ocorrem hoje, não serão o apogeu do processo de democratização do Iraque, conforme desejaria o governo do
republicano George W. Bush, nem legítimas, pois a insegurança existente no país não permitirá que uma parcela
significativa da população vote. Mesmo assim, dependendo do modo de agir dos prováveis vencedores -os
xiitas- e dos virtuais maiores perdedores -os árabes
sunitas-, elas poderão, a médio ou longo prazos, revelar-se um passo na direção da estabilização do Iraque, de
acordo com especialistas ouvidos pela Folha.
"Indubitavelmente, a votação
não será legítima, pois boa parte
dos eleitores se sentirá ameaçada
pelas declarações dos insurgentes
e dos terroristas e não comparecerá às urnas. Não é possível defender a legitimidade de um pleito
que se realizará num país em que
há terríveis atos terroristas cotidianamente e a violência aterroriza a população", avaliou Kenneth
Waltz, um dos papas do estudo
das relações internacionais.
"Esse quadro caótico foge à definição de democracia, da qual
eleições livres e transparentes são
a pedra angular", acrescentou o
autor de, entre diversos outros,
"Theory of International Politics"
(teoria da política internacional).
De fato, segundo a definição do
dicionário "Aurélio", democracia
é um "regime político baseado
nos princípios da soberania popular e da distribuição eqüitativa
do poder, ou seja, um regime de
governo que se caracteriza, em essência, pela liberdade do ato eleitoral, pela divisão dos poderes e
pelo controle da autoridade".
Ora, é necessário constatar que,
com o boicote defendido por vários grupos árabe-sunitas e com
as ameaças da insurgência iraquiana e dos terroristas, não há
real "liberdade do ato eleitoral"
no Iraque atualmente. Assim,
mesmo que sejam transparentes e
sem suspeitas de fraude, as eleições não se enquadrarão na definição clássica de democracia.
Na verdade, poucos Estados
crêem verdadeiramente que a votação iraquiana vá ser legítima.
Na última quinta-feira, foi a vez
do premiê turco, Recep Tayyip
Erdogan, afirmar que ela não será
democrática. Antes dele, o presidente russo, Vladimir Putin, já expressara preocupação com o modo como o pleito transcorrerá.
Nos bastidores, vários países da
Europa continental são contrários à realização das eleições hoje.
Em razão do viveiro de terroristas
em que o Iraque se transformou
nos últimos 20 meses, todavia, as
potências européias sabem que o
agravamento da situação de segurança no país é quase tão deletério
a seus interesses quanto aos americanos e, portanto, apóiam a contragosto a manutenção do calendário eleitoral iraquiano.
Afinal, nenhum governo ocidental quer o fortalecimento do
terrorismo "jihadista" de alguns
grupos que atuam no Iraque nem
a disseminação da mensagem
apocalíptica da rede Al Qaeda, de
Osama bin Laden, pela Europa.
"Diversos Estados europeus, sobretudo a França e a Alemanha,
não gostam da idéia de apoiar as
ações dos EUA no Iraque, já que
foram contrários à invasão e à
guerra. Contudo a rusga diplomática transatlântica não é nada se
comparada com a perspectiva do
alastramento do terror iraquiano
pelo Oriente Médio e até pelo leste
e pelo sul da Europa", analisou
Michael Kreile, especialista em
União Européia da Universidade
Humboldt (Alemanha).
No mundo árabe, a ascensão
dos xiitas iraquianos, prováveis
vencedores das eleições de hoje
em virtude da composição demográfica do país, preocupa a classe
política. Afinal, eles poderiam forjar uma aliança com os clérigos
que controlam o vizinho Irã, pondo em risco a predominância política sunita no Oriente Médio.
Etapa da estabilização?
Para os especialistas, o modo
como os xiitas iraquianos lidarão
com sua provável esmagadora vitória será crucial para evitar a deterioração do conflito sectário incipiente que já existe no Iraque.
"É irrefutável que os árabes sunitas serão sub-representados na
futura assembléia iraquiana, que
redigirá a Constituição e escolherá o novo governo", apontou Frederick Barton, diretor do Projeto
para Reconstrução Pós-Conflito,
do Centro para Estudos Estratégicos e Internacionais (EUA).
"Assim, será preciso abrir caminho para a participação dos árabes sunitas, que constituem 20%
da população. No entanto ainda
não sabemos se os xiitas, que tanto sofreram durante a ditadura de
Saddam Hussein, estarão dispostos a fazê-lo", acrescentou Barton.
Se os líderes xiitas perceberem
que a inclusão dos árabes sunitas
no processo político será uma forma de evitar a piora do conflito
sectário, as eleições "poderão, em
meses ou anos, revelar-se um passo decisivo na direção da estabilização do Iraque", de acordo com
James Lindsay, ex-diretor para
questões globais e assuntos multilaterais do Conselho de Segurança Nacional dos EUA (1996-97).
"A crise só será resolvida pelos
iraquianos. A boa notícia é que a
maioria dos xiitas e dos curdos
[sunitas], que compõem ao menos 75% da população, quer, por
ora, o sucesso da democratização.
A má notícia é que, mesmo em
menor número, os árabes sunitas
e os terroristas podem fazer o país
mergulhar na guerra civil. O sucesso dependerá de paciência, de
sorte e de bons líderes."
(MÁRCIO SENNE DE MORAES)
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