São Paulo, domingo, 30 de janeiro de 2005

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ELEIÇÕES ARMADAS

"O quadro caótico do Iraque foge à definição de democracia"
KENNETH WALTZ

"A boa notícia é que maioria dos xiitas e curdos querem a democratização"
JAMES LINDSAY

Reação de vencedores e perdedores vai definir o futuro da estabilização do país

Eleições iraquianas não são legítimas, dizem especialistas

DA REDAÇÃO

AS ELEIÇÕES LEGISLATIVAS IRAQUIANAS, que ocorrem hoje, não serão o apogeu do processo de democratização do Iraque, conforme desejaria o governo do republicano George W. Bush, nem legítimas, pois a insegurança existente no país não permitirá que uma parcela significativa da população vote. Mesmo assim, dependendo do modo de agir dos prováveis vencedores -os xiitas- e dos virtuais maiores perdedores -os árabes sunitas-, elas poderão, a médio ou longo prazos, revelar-se um passo na direção da estabilização do Iraque, de acordo com especialistas ouvidos pela Folha.

"Indubitavelmente, a votação não será legítima, pois boa parte dos eleitores se sentirá ameaçada pelas declarações dos insurgentes e dos terroristas e não comparecerá às urnas. Não é possível defender a legitimidade de um pleito que se realizará num país em que há terríveis atos terroristas cotidianamente e a violência aterroriza a população", avaliou Kenneth Waltz, um dos papas do estudo das relações internacionais.
"Esse quadro caótico foge à definição de democracia, da qual eleições livres e transparentes são a pedra angular", acrescentou o autor de, entre diversos outros, "Theory of International Politics" (teoria da política internacional).
De fato, segundo a definição do dicionário "Aurélio", democracia é um "regime político baseado nos princípios da soberania popular e da distribuição eqüitativa do poder, ou seja, um regime de governo que se caracteriza, em essência, pela liberdade do ato eleitoral, pela divisão dos poderes e pelo controle da autoridade".
Ora, é necessário constatar que, com o boicote defendido por vários grupos árabe-sunitas e com as ameaças da insurgência iraquiana e dos terroristas, não há real "liberdade do ato eleitoral" no Iraque atualmente. Assim, mesmo que sejam transparentes e sem suspeitas de fraude, as eleições não se enquadrarão na definição clássica de democracia.
Na verdade, poucos Estados crêem verdadeiramente que a votação iraquiana vá ser legítima. Na última quinta-feira, foi a vez do premiê turco, Recep Tayyip Erdogan, afirmar que ela não será democrática. Antes dele, o presidente russo, Vladimir Putin, já expressara preocupação com o modo como o pleito transcorrerá.
Nos bastidores, vários países da Europa continental são contrários à realização das eleições hoje. Em razão do viveiro de terroristas em que o Iraque se transformou nos últimos 20 meses, todavia, as potências européias sabem que o agravamento da situação de segurança no país é quase tão deletério a seus interesses quanto aos americanos e, portanto, apóiam a contragosto a manutenção do calendário eleitoral iraquiano.
Afinal, nenhum governo ocidental quer o fortalecimento do terrorismo "jihadista" de alguns grupos que atuam no Iraque nem a disseminação da mensagem apocalíptica da rede Al Qaeda, de Osama bin Laden, pela Europa.
"Diversos Estados europeus, sobretudo a França e a Alemanha, não gostam da idéia de apoiar as ações dos EUA no Iraque, já que foram contrários à invasão e à guerra. Contudo a rusga diplomática transatlântica não é nada se comparada com a perspectiva do alastramento do terror iraquiano pelo Oriente Médio e até pelo leste e pelo sul da Europa", analisou Michael Kreile, especialista em União Européia da Universidade Humboldt (Alemanha).
No mundo árabe, a ascensão dos xiitas iraquianos, prováveis vencedores das eleições de hoje em virtude da composição demográfica do país, preocupa a classe política. Afinal, eles poderiam forjar uma aliança com os clérigos que controlam o vizinho Irã, pondo em risco a predominância política sunita no Oriente Médio.

Etapa da estabilização?
Para os especialistas, o modo como os xiitas iraquianos lidarão com sua provável esmagadora vitória será crucial para evitar a deterioração do conflito sectário incipiente que já existe no Iraque.
"É irrefutável que os árabes sunitas serão sub-representados na futura assembléia iraquiana, que redigirá a Constituição e escolherá o novo governo", apontou Frederick Barton, diretor do Projeto para Reconstrução Pós-Conflito, do Centro para Estudos Estratégicos e Internacionais (EUA).
"Assim, será preciso abrir caminho para a participação dos árabes sunitas, que constituem 20% da população. No entanto ainda não sabemos se os xiitas, que tanto sofreram durante a ditadura de Saddam Hussein, estarão dispostos a fazê-lo", acrescentou Barton.
Se os líderes xiitas perceberem que a inclusão dos árabes sunitas no processo político será uma forma de evitar a piora do conflito sectário, as eleições "poderão, em meses ou anos, revelar-se um passo decisivo na direção da estabilização do Iraque", de acordo com James Lindsay, ex-diretor para questões globais e assuntos multilaterais do Conselho de Segurança Nacional dos EUA (1996-97).
"A crise só será resolvida pelos iraquianos. A boa notícia é que a maioria dos xiitas e dos curdos [sunitas], que compõem ao menos 75% da população, quer, por ora, o sucesso da democratização. A má notícia é que, mesmo em menor número, os árabes sunitas e os terroristas podem fazer o país mergulhar na guerra civil. O sucesso dependerá de paciência, de sorte e de bons líderes."
(MÁRCIO SENNE DE MORAES)


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