|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
ELEIÇÕES ARMADAS
"Entre os xiitas do Iraque há de tudo, dos ultra-religiosos aos completamente seculares"
"Não interessa o que diga Bush. Importa como os iraquianos vão receber os resultados"
Washington teme que a vitória dos xiitas alinhe o Iraque com a teocracia islâmica iraniana
Possível laço com o Irã atormenta os EUA
LUCIANA COELHO
DE NOVA YORK
O RESULTADO DAS eleições no Iraque é uma
incógnita. Mesmo assim, o
foco de atenção dos EUA
no governo que assumir já
está definido: será o relacionamento com o Irã,
atual alvo de pressões
americanas. Se confirmados os prognósticos, os xiitas, que perfazem 60% da
população do Iraque, subirão ao poder pela primeira
vez desde a independência, em 1932. O que os EUA
temem é que essa população, reprimida durante a
ditadura de Saddam, se alinhe aos xiitas iranianos e
repita no Iraque o modelo
de governo de Teerã, uma
teocracia islâmica.
Especialistas defendem que o
caso, por enquanto, é apenas de
atenção -não de preocupação.
Ainda que o desenrolar dos fatos
a partir de hoje mereça ser acompanhado de perto, analistas consultados pela Folha afirmam que
um alinhamento Irã-Iraque é
pouco provável. A aproximação
dependerá essencialmente de os
iraquianos empossarem um governo religioso. "A chance de isso
acontecer é pequena", diz Michael O'Hanlon, especialista em
política iraquiana do Instituto
Brookings (Washington).
Os dois principais partidos iraquianos -o Dawa e o Conselho
Supremo para a Revolução Islâmica no Iraque- receberam
apoio moral e financeiro do país
vizinho. Mas na última semana,
líderes da Aliança Unida Iraquiana -bloco que reúne os partidos
supracitados, cujos candidatos
devem concentrar os votos de hoje- afirmaram que adotarão um
governo secular, deixando a religião em segundo plano.
Também há um acordo informal para que nenhum ministério
seja entregue aos clérigos. Dos 228
candidatos à assembléia apresentados pela aliança, menos de 12
são líderes religiosos, afirmam os
líderes do grupo.
O anúncio tem peso. Com exceção do premiê interino Iyad Allawi -ele também um xiita secular- todos os candidatos a premiê da pretensa democracia iraquiana se alinharam à aliança. E
provém da crença, por parte dos
próprios líderes da aliança, de que
a população iraquiana rejeitaria
um modelo teocrático.
Judith Kipper, diretora do Fórum do Oriente Médio no Council
on Foreign Relations, também na
capital americana, alerta para o
fato de os xiitas do Iraque e os do
Irã guardarem mais diferenças do
que semelhanças entre si.
"Certamente há afinidade entre
alguns xiitas iraquianos e alguns
iranianos. Mas, haja vista os oito
anos de guerra entre os dois países, eles não se alinham. Mesmo
tendo afinidades culturais e religiosas, são povos diferentes [os
iraquianos são árabes e os iranianos são persas]", afirma.
Além disso as significativas divisões demográficas no Iraque devem funcionar como freio para
um governo teocrático. Os sunitas
são 20%. Os curdos perfazem 15%
e, embora sunitas, buscam autonomia. "Acredito que a maioria
dos iraquianos esteja esperando
ter uma forma de governo restrita, pois para que o Iraque sobreviva eles precisam viver juntos."
Os sunitas, que pelos últimos 30
anos dominaram a política iraquiana, temem perder a voz numa assembléia dominada por xiitas. Os dois ramos do islamismo
se dividiram por conta de uma divergência sobre a sucessão do
profeta Muhammad. Mas no Iraque, pela dinâmica de poder, a
ruptura se tornou mais profunda.
Politicamente, os xiitas iraquianos são mais divididos do que os
iranianos. "Entre os xiitas do Iraque há de tudo, dos ultra-religiosos aos completamente seculares.
Não se pode falar em "os xiitas" ali,
o escopo é muito amplo", afirma.
Prognósticos à parte, Kipper diz
que a resposta mais importante
está por vir: é a legitimidade que
os iraquianos atribuirão ao processo iniciado hoje. "Não interessa o que diga o presidente dos
EUA, ou o da França, ou os jornalistas. O que importa é como os
iraquianos vão receber os resultados", diz. E a recepção dependerá
do comparecimento às urnas.
"Precisamos ver ainda qual será
o comparecimento [às urnas] e se
os iraquianos vão considerar a votação legítima", afirma. "A situação é muito complicada. A falta de
segurança e o medo da minoria
sunita de não ter seus direitos respeitados podem afetar o índice de
comparecimento."
O'Hanlon, do Brookings, ainda
não vê razão para Washington se
preocupar. "Contanto que um governo religioso não seja muito extremo e que eventuais laços com o
Irã não impliquem um apoio conjunto ao terrorismo ou à agressão
contra outros países da região,
acho que podemos conviver com
isso. Mesmo que não gostemos."
Texto Anterior: Véspera da votação tem 17 mortos e muito medo Próximo Texto: Insegurança afasta eleitor, admite presidente Índice
|