São Paulo, domingo, 30 de janeiro de 2005

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ELEIÇÕES ARMADAS

"Entre os xiitas do Iraque há de tudo, dos ultra-religiosos aos completamente seculares"

"Não interessa o que diga Bush. Importa como os iraquianos vão receber os resultados"


Washington teme que a vitória dos xiitas alinhe o Iraque com a teocracia islâmica iraniana

Possível laço com o Irã atormenta os EUA

LUCIANA COELHO
DE NOVA YORK

O RESULTADO DAS eleições no Iraque é uma incógnita. Mesmo assim, o foco de atenção dos EUA no governo que assumir já está definido: será o relacionamento com o Irã, atual alvo de pressões americanas. Se confirmados os prognósticos, os xiitas, que perfazem 60% da população do Iraque, subirão ao poder pela primeira vez desde a independência, em 1932. O que os EUA temem é que essa população, reprimida durante a ditadura de Saddam, se alinhe aos xiitas iranianos e repita no Iraque o modelo de governo de Teerã, uma teocracia islâmica.

Especialistas defendem que o caso, por enquanto, é apenas de atenção -não de preocupação. Ainda que o desenrolar dos fatos a partir de hoje mereça ser acompanhado de perto, analistas consultados pela Folha afirmam que um alinhamento Irã-Iraque é pouco provável. A aproximação dependerá essencialmente de os iraquianos empossarem um governo religioso. "A chance de isso acontecer é pequena", diz Michael O'Hanlon, especialista em política iraquiana do Instituto Brookings (Washington).
Os dois principais partidos iraquianos -o Dawa e o Conselho Supremo para a Revolução Islâmica no Iraque- receberam apoio moral e financeiro do país vizinho. Mas na última semana, líderes da Aliança Unida Iraquiana -bloco que reúne os partidos supracitados, cujos candidatos devem concentrar os votos de hoje- afirmaram que adotarão um governo secular, deixando a religião em segundo plano.
Também há um acordo informal para que nenhum ministério seja entregue aos clérigos. Dos 228 candidatos à assembléia apresentados pela aliança, menos de 12 são líderes religiosos, afirmam os líderes do grupo.
O anúncio tem peso. Com exceção do premiê interino Iyad Allawi -ele também um xiita secular- todos os candidatos a premiê da pretensa democracia iraquiana se alinharam à aliança. E provém da crença, por parte dos próprios líderes da aliança, de que a população iraquiana rejeitaria um modelo teocrático.
Judith Kipper, diretora do Fórum do Oriente Médio no Council on Foreign Relations, também na capital americana, alerta para o fato de os xiitas do Iraque e os do Irã guardarem mais diferenças do que semelhanças entre si.
"Certamente há afinidade entre alguns xiitas iraquianos e alguns iranianos. Mas, haja vista os oito anos de guerra entre os dois países, eles não se alinham. Mesmo tendo afinidades culturais e religiosas, são povos diferentes [os iraquianos são árabes e os iranianos são persas]", afirma.
Além disso as significativas divisões demográficas no Iraque devem funcionar como freio para um governo teocrático. Os sunitas são 20%. Os curdos perfazem 15% e, embora sunitas, buscam autonomia. "Acredito que a maioria dos iraquianos esteja esperando ter uma forma de governo restrita, pois para que o Iraque sobreviva eles precisam viver juntos."
Os sunitas, que pelos últimos 30 anos dominaram a política iraquiana, temem perder a voz numa assembléia dominada por xiitas. Os dois ramos do islamismo se dividiram por conta de uma divergência sobre a sucessão do profeta Muhammad. Mas no Iraque, pela dinâmica de poder, a ruptura se tornou mais profunda.
Politicamente, os xiitas iraquianos são mais divididos do que os iranianos. "Entre os xiitas do Iraque há de tudo, dos ultra-religiosos aos completamente seculares. Não se pode falar em "os xiitas" ali, o escopo é muito amplo", afirma.
Prognósticos à parte, Kipper diz que a resposta mais importante está por vir: é a legitimidade que os iraquianos atribuirão ao processo iniciado hoje. "Não interessa o que diga o presidente dos EUA, ou o da França, ou os jornalistas. O que importa é como os iraquianos vão receber os resultados", diz. E a recepção dependerá do comparecimento às urnas.
"Precisamos ver ainda qual será o comparecimento [às urnas] e se os iraquianos vão considerar a votação legítima", afirma. "A situação é muito complicada. A falta de segurança e o medo da minoria sunita de não ter seus direitos respeitados podem afetar o índice de comparecimento."
O'Hanlon, do Brookings, ainda não vê razão para Washington se preocupar. "Contanto que um governo religioso não seja muito extremo e que eventuais laços com o Irã não impliquem um apoio conjunto ao terrorismo ou à agressão contra outros países da região, acho que podemos conviver com isso. Mesmo que não gostemos."

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