São Paulo, domingo, 20 de maio de 2001

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MOSTRA É PONTUA DA POR EMBATES POLÍTICOS, FINANCEIROS E CULTURAIS

A Bienal de crises

ALVARO MACHADO
FREE-LANCE PARA A FOLHA

Como num folhetim da era pré-globalizada, alianças de ocasião e manobras fulminantes entre interesses financeiros, credos políticos e formações culturais diversas são elementos indissociáveis da Bienal de São Paulo já a partir de sua segunda década de existência.
Desde 1963, raramente deixou-se de registrar disputas e escândalos em torno das mostras de arte contemporânea com a marca cunhada pelo industrial Ciccillo (Francisco) Matarazzo Sobrinho (1898-1977), filho de imigrantes italianos ilustrado pelo casamento com a quatrocentona cultivada Yolanda Penteado (1903-83).
A crise mais recente, que ainda ameaça renascer das cinzas como uma fênix, concretizou-se em dois adiamentos consecutivos na realização da 25� Bienal Internacional, após uma série de batalhas intestinas no Conselho da Fundação, que gerencia o evento.
Repintou-se, enfim, o retrato de uma classe dirigente propensa a litígios de influência, quadro familiar à Bienal de São Paulo.
Depois da fase inicial dos anos 50, quando as únicas exclamações partiam de um público chocado com a novidade dos estilos abstracionistas, a Bienal de São Paulo começa a virar palco de confrontações pouco ou nada artísticas.

UM LEAR DAS ARTES
A primeira grande crise, em 1962, deveu-se a uma decisão autoritária de Ciccillo Matarazzo, transformando a Bienal em Fundação e desligando-a do Museu de Arte Moderna, que ele próprio criara anos antes, mas que começava a escapar a seu controle.
Ao arbitrar dessa maneira, o industrial, como um Lear um tanto fatigado, abriria a Bienal a administrações plurais e, consequentemente, às disputas de poder que se verificariam a partir de então.
Porém, é preciso voltar um pouco mais no tempo para entender a conjuntura de 62. E constatar que os muitos embates personalistas registrados na história do evento -seja entre gente imbuída de responsabilidades educativas, apaixonada por telas ou apenas cobiçosa de "distinção artística"- remontam à gênese dos museus paulistanos dedicados à arte do século 20.
Já em 1948, Ciccillo superava a pretensão do intelectual Sérgio Milliet, diretor da Biblioteca Mário de Andrade, de criar uma primeira coleção pública de arte moderna. Ao mesmo tempo, rivalizava publicamente com o jornalista Assis Chateaubriand pela liderança do mecenato às artes visuais no país.
Entre 47 e 48, os empresários criaram dois dos mais importantes museus brasileiros, que passariam a funcionar de fato em 49, curiosamente no mesmo prédio da rua Sete de Abril, no centro da cidade: o Museu de Arte Moderna, de Ciccillo -estreitamente ligado à Bienal entre os anos de 51 a 62- e o Museu de Arte de São Paulo, de Chateaubriand (assessorado por Pietro Maria Bardi).


NA DÉCADA DE 60, CICCILLO DOA COLEÇÃO DE OBRAS DO MAM À USP, ESVAZIANDO O MUSEU



VERBAS DA INDÚSTRIA
Não é demais recordar que a memória dessas instituições culturais sobrepujou o sucesso das marcas alimentícias e jornalísticas de seus mecenas, hoje quase extintas ou em mãos de terceiros.
A partir da 3� Bienal, em 55, começam a se registrar discordâncias dos participantes brasileiros quanto aos critérios de seleção e premiação das obras. Parte dessas "crises estéticas" está ao longo do caderno, em quadros com a cronologia da Bienal.
Em 59, o pavilhão Armando Arruda Pereira, no parque Ibirapuera, passou a abrigar não apenas a Bienal, mas também o próprio MAM. Em 62, porém, a Bienal já se tornara muito maior e de administração mais complexa do que o museu ao qual eram destinadas as obras premiadas na mostra.
Descontente, Ciccillo afirmava que o MAM se mantinha exclusivamente com verbas retiradas de suas indústrias. "Poucos conselheiros do museu se dispunham a seguir seu exemplo, e além do mais a segurança do acervo no Ibirapuera era precária", diz Walter Zanini, professor de história da arte da Universidade de São Paulo nos anos 60 e nome de referência para a Bienal nos anos 80.
Assim, em abril de 62, Ciccillo pediu a separação de MAM e Bienal como entidades autônomas.
O confronto entre MAM e Bienal veio meses depois, quando Ciccillo e Yolanda doaram à USP suas três coleções particulares de obras de arte, além da coleção que formava o acervo MAM, destituído assim da noite para o dia de seus fundamentos visuais.
Reza a história que a decisão de Ciccillo foi tomada durante uma viagem à Europa em companhia do médico Antônio Barros Ulhôa Cintra, reitor da USP, que lhe prometeu um terreno no campus e a construção de um novo museu.
A classificação das quatro coleções doadas foi feita por Zanini num andar inteiro do Pavilhão Bienal. Em 63, foi criado o Museu de Arte Contemporânea da USP, com Zanini como seu primeiro diretor e ramificação no terceiro andar do Pavilhão do Ibirapuera (em funcionamento até hoje), já que o prédio do museu na Cidade Universitária só viria a ser inaugurado em 1990.

RESSENTIMENTOS
Indignados com a atitude de Ciccillo, diretores e conselheiros do MAM, liderados pelo crítico Mário Pedrosa (1900-81) e pelos irmãos Arnaldo e Oscar Pedroso d'Horta, reivindicaram judicialmente a sigla do museu, bem como a sua coleção. Tiveram de se contentar com o nome e, em 69, estabeleceram "provisoriamente" o museu num extremo da marquise do Ibirapuera, local onde se encontra até hoje.
Os ressentimentos ainda são latentes: há cerca de dois anos foram feitos estudos para calcular as chances de o MAC devolver ao MAM parte de seu acervo.
A segunda maior crise atravessada pela Bienal teve início em 69, ano da decretação do AI-5, quando a mostra foi identificada com o regime militar brasileiro pelo meio artístico internacional. Tal atitude pode ter sido motivada, entre outros fatos, pela presença de generais-presidentes em aberturas de Bienais nos anos 60.
Lamentavelmente, o episódio derrubou a credibilidade da mostra no momento mesmo em que era possível reputá-la como o maior evento mundial de arte contemporânea, à frente até da Bienal de Veneza, mais antiga, porém vivendo uma crise de conceitos naqueles anos.


CRÍTICAS ÀS ESCOLHAS DO JÚRI SE ACIRRARAM A PONTO DE A PREMIAÇÃO SER ABOLIDA


No auge do regime de exceção, artistas como Hélio Oiticica, vivendo então na França, insuflaram as delegações estrangeiras a boicotar a Bienal.
Após a adesão de críticos importantes, como o francês Pierre Restany, o dominó de desistências avançou com a queda de Alemanha, Suécia, Áustria, Itália e outros países.
No Brasil, os artistas mais importantes imitaram o comportamento, esvaziando completamente a 10� Bienal. "Além da forte repressão, sabíamos que os militares também haviam proibido algumas exposições", lembra o artista argentino Julio Le Parc (em 64, a mostra "Civilização do Nordeste", organizada pela arquiteta Lina Bo Bardi para Roma, foi proibida pela embaixada brasileira na Itália).
A Bienal de SP não foi a única grande mostra internacional a enfrentar oposição naqueles anos turbulentos. Na Europa, a onda de rebelião jovem questionou eventos como a Bienal de Veneza e a Bienal Jovem de Paris. Porém, São Paulo continuou sofrendo boicotes e desconfiança ainda por dez anos.
O artista Marcelo Grassmann, que recebeu os prêmios de gravura e desenho na 3� e na 4� Bienais, analisa: "Apesar de experimentarmos a possibilidade insuportável de corte quando uma obra era considerada "subversiva" (pela organização do evento), o boicote dos brasileiros foi um erro político, pois os militares estavam pouco interessados em manifestações culturais desse gênero", diz.
"Isso deu oportunidade ao pipocamento de "bienaizinhas" de "paisecos" em todo o mundo, que se diziam "livres" e, portanto, hipoteticamente mais importantes que a de SP", lembra o artista.
"Nas primeiras Bienais", prossegue Grassmann, "tivemos o privilégio de ver "Guernica", telas de Van Gogh e outras obras históricas trazidas pelo prestígio do evento. Isso se perdeu, e, na década de 70, a seção museológica foi substituída por obras herméticas ou publicitárias, num processo novidadeiro autofágico."


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