São Paulo, domingo, 28 de maio de 2000


Envie esta notícia por e-mail para
assinantes do UOL ou da Folha
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

LUÍS NASSIF

Rainha do samba-canção


No começo de minha carreira jornalística, recebi o convite para me tornar o crítico de música da revista "Veja", em substituição a Tarik de Souza, que tinha decidido voltar para o Rio. Isso lá pelos idos de 1974.
Acabei recusando e optando pela economia, área que achava um "porre", mas pelo menos permitia aprofundar conhecimentos -porque a crítica de música andava de um vazio de dar gosto.
Tinha a figura maiúscula de José Lino Grunewald, do próprio Tarik, as pesquisas do Tinhorão, o Maurício Kubrusly, no "Jornal da Tarde", e dois jornalistas com conhecimento excepcional de história da música brasileira, mas que escreviam muito pouco sobre o tema -o Alberto Helena Jr. e o João Máximo. E não se ia muito além.
Desde aquela época todo jovem candidato a crítico utilizava padrões que se repetem até hoje. Consistia nisso:
1) Critique um compositor, de preferência dos maiores, e diga que ele está decadente porque seu último disco não é inovador (como se fosse possível produzir uma revolução musical por ano);
2) Utilize padrões de gosto da classe média, e simplifique os critérios de análise em torno do que é "in" e "out" (como fazem os colunistas sociais).
Pensei muito sobre quando foi criado esse padrão de análise, tão pouco inovador, aliás.
Nelson Motta, que testemunhou esse período com olhos bem abertos, talvez possa esclarecer. À distância, creio que esse padrão de crítica deve ter surgido lá pelos idos dos anos 50, no rastro da bossa nova, manobrado por seus porta-vozes jornalísticos.
Lá em Poços de Caldas, não tinha acesso aos jornais do Rio, mas creio que Ronaldo Bôscoli deve ter sido o aríete para a entrada do movimento na mídia.
A bossa nova passou a girar em torno de alguns slogans que são repetidos até hoje. Como o de que a música brasileira da época era dominada por bolerões, com cantores e cantoras dramáticos e fora de moda, que foram sufocados pela leveza do novo movimento que surgiu assim, como que do nada, tese, aliás, que Ruy Castro esposa com enorme facilidade em seu, de resto, belíssimo levantamento sobre o movimento.
Ora, que existiam o bolerão e os dramáticos, não resta dúvida, como sempre existiram, aliás, e continuarão existindo, sob roupagens diversas -algumas, aliás, muito bonitas. O que importa é que a bossa nova foi uma continuação, não uma ruptura, de um movimento de modernização da música brasileira que tem início nos anos 40, sob influência dos cassinos, da moderna canção americana, de figuras como Sinatra e Julie London, e que tem como leito principal o samba-canção, movimento que ficou um tanto depreciado depois, porque seus maiores não eram bonitões de praia, como os jovens filhos da bossa.
A bossa nova é um afluente do samba-canção, tão boa quanto, mas afluente. A diferença está apenas na batida de violão de João Gilberto e na temática de praia, trazida por Vinicius e Bôscoli e depois repetida até a exaustão pelos seguidores.
Aliás, todos os pioneiros da chamada bossa nova vieram do samba-canção, como o próprio Tom Jobim, Newton Mendonça, Dolores Duran, Silvia Telles e João Gilberto, que cantava imitando Orlando Silva, conforme levantou a pesquisa minuciosa de Ruy Castro.
Nesse período, em que prosperou a chamada "música de fossa", não houve ninguém como Maísa Figueira Monjardim, ex-Matarazzo, com exceção, talvez, de Dolores Duran, talentosíssima, mas sem o "appeal" de Maísa.
Aluna do Sacre Coeur, tornou-se uma Matarazzo e não se enquadrou. Tinha um componente auto-destrutivo, fumava demais, bebia demais, engordava, internava-se, voltava linda, tinha outra crise, outros amores. E a gente lá em Poços de Caldas esperando chegar o "Cruzeiro" para saber a última que a deusa tinha aprontado.
Conferindo a biografia de Maísa, custa acreditar que tenha morrido com apenas 41 anos, tal a diversidade de sua vida e de sua obra. Deixou o Brasil no auge da fama e da bebida, casou-se, mudou-se para a Espanha, fez carreira internacional, voltou, começou a se tratar e morreu em um desastre quando voltara a ser bela.
O importante é que, além de porta-voz de um estilo de vida da época, foi a cantora sofisticada que passou pela bossa nova mas que se tornou a intérprete preferencial de uma geração de compositores, que tem seu auge entre 1945 e 1960.
Na média, essa geração foi muito mais talentosa do que os chamados "quadros da bossa" (se excluir Jobim, Carlos Lyra e Menescal). Músicos como Antônio Maria, Raul Sampaio, Benil Santos, José Maria de Abreu, Haroldo Barbosa, Jair Amorim, Evaldo Gouveia, Pernambuco e Luiz Antônio, que deixaram um dos mais consistentes, ricos e sofisticados acervos de música brasileira do século.
Faltou a eles apenas um porta-voz como Bôscoli.

E-mail - lnassif@uol.com.br



Texto Anterior: Tendências Internacionais - Gilson Schwartz: Europa também reage ao poderio de Bill Gates
Próximo Texto: Análise: Rombo não é decisivo no preço
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.