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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS
A sombra do dólar
LUIZ GONZAGA BELLUZZO
O barco do vizinho faz água.
Em 1991, para fugir a agruras de um sistema monetário destruído pela hiperinflação, os argentinos adotaram um regime de
"currency board". Isso significou
a fixação do câmbio, com conversibilidade plena da moeda, tanto
na conta de transações correntes
quanto na conta que registra o
movimento de capitais. Na prática entregaram as funções de administração do crédito, de provedor de liquidez e de "prestamista
de última instância" ao Federal
Reserve.
A experiência histórica demonstra que o regime de taxa fixa é um instrumento decisivo para controlar a inflação alta ou a
hiperinflação. Os defensores da
taxa fixa imaginam, além disso,
que o "currency board" vá infundir mais confiança nos investidores estrangeiros, melhorando as
condições de liquidez para o país
de moeda fraca. Sendo assim, os
eventuais desequilíbrios em transações correntes poderiam ser,
num primeiro momento, compensados pela entrada de capitais, com uma redução dos diferenciais de juros, entre os pagos
aqui e os lá de fora.
O compromisso duro e implacável com a taxa fixa e o avanço da
abertura comercial permitiriam a
operação "da lei de um só preço",
reduzindo progressivamente os
diferenciais de inflação e de taxas
de juros entre o país e o resto do
mundo, tornando cada vez mais
importantes as expectativas de
valorização dos ativos domésticos, enquanto forma de atração
do capital forâneo.
Nessa visão, o "desaparecimento" do risco de desvalorização
cambial aumentaria o grau de
substituição entre ativos domésticos e ativos estrangeiros. Ou seja,
a redução drástica do risco cambial determinaria uma maior integração entre o mercado financeiro nacional e o mercado internacional, melhorando, aos olhos
dos investidores estrangeiros, a
qualidade dos "nossos" ativos reprodutivos e dos títulos de dívida
emitidos para possuí-los. Se assim
fosse, dentro de um prazo razoável a ação dos novos investimentos e a melhoria da eficiência imposta pela concorrência externa
levariam à recuperação sólida da
balança comercial e à redução do
déficit em transações correntes. O
ministro Cavallo argumentava
que o "currency board" era a condição essencial para o surgimento
de um peso forte.
Esse regime iria requerer, como
é reconhecido, a imobilização da
política monetária, à medida que
as condições de liquidez da economia deveriam ser determinadas pelas flutuações no volume de
reservas cambiais. Essa escolha
implica a aceitação do risco de
ajustamentos recessivos e a deflação de preços quando mudam as
condições de liquidez dos mercados financeiros externos ou quando ocorre uma flutuação negativa
dos termos de intercâmbio.
Dada a fragilidade de seu sistema industrial e o baixo dinamismo de suas exportações -agravados pela imprudente liberalização comercial e financeira-, os
ciclos de crescimento na Argentina foram relativamente curtos,
invariavelmente acompanhados
de elevação do déficit em transações correntes, aumento do endividamento externo (e de valorização de ativos). Desgraçadamente,
foram seguidos de crises de confiança, saída de capitais e aumento na proporção dos contratos de
dívida e dos depósitos bancários
denominados em dólares. Esses
movimentos comprimem a liquidez doméstica, fazem saltar as taxas de juros e lançam a economia
na senda da recessão, da fragilidade financeira fiscal, do desemprego elevado. Os males da hiperinflação são substituídos pelos
inconvenientes das violentas flutuações da taxa de crescimento
do produto e do emprego.
Na verdade, até a desvalorização do real o "currency board" sobreviveu à custa da aventura
cambial brasileira (ainda há
quem se disponha a trocar o seu
reino por um Cavallo). Depois de
janeiro de 1999, a Argentina vem
se debatendo entre as ilusões da
"dolarização" e a realidade das
políticas deflacionárias e de arrocho fiscal. Tudo para continuar
merecendo a confiança dos mercados financeiros. Esses, ao que
tudo indica, preferem atender aos
sinais emitidos pelo Federal Reserve e fogem dos papéis argentinos, enquanto os possuidores de
riqueza locais aumentam em
suas carteiras a proporção dos
ativos denominados em dólares.
Os que defendem o "currency
board" tentam explicar que a desvalorização é uma loucura. Mas
loucura maior foi ignorar que a
adoção desses regimes cambiais e
monetários costuma provocar irreversibilidades: o peso não é fraco nem forte. Simplesmente não
existe mais, é apenas uma sombra
do dólar.
Luiz Gonzaga Belluzzo, 57, é professor
titular de Economia da Unicamp (Universidade de Campinas). Foi chefe da Secretaria Especial de Assuntos Econômicos
do Ministério da Fazenda (governo Sarney) e secretário de Ciência e Tecnologia
do Estado de São Paulo (governo Quércia).
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