São Paulo, domingo, 28 de maio de 2000


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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

A sombra do dólar


LUIZ GONZAGA BELLUZZO

O barco do vizinho faz água. Em 1991, para fugir a agruras de um sistema monetário destruído pela hiperinflação, os argentinos adotaram um regime de "currency board". Isso significou a fixação do câmbio, com conversibilidade plena da moeda, tanto na conta de transações correntes quanto na conta que registra o movimento de capitais. Na prática entregaram as funções de administração do crédito, de provedor de liquidez e de "prestamista de última instância" ao Federal Reserve.
A experiência histórica demonstra que o regime de taxa fixa é um instrumento decisivo para controlar a inflação alta ou a hiperinflação. Os defensores da taxa fixa imaginam, além disso, que o "currency board" vá infundir mais confiança nos investidores estrangeiros, melhorando as condições de liquidez para o país de moeda fraca. Sendo assim, os eventuais desequilíbrios em transações correntes poderiam ser, num primeiro momento, compensados pela entrada de capitais, com uma redução dos diferenciais de juros, entre os pagos aqui e os lá de fora.
O compromisso duro e implacável com a taxa fixa e o avanço da abertura comercial permitiriam a operação "da lei de um só preço", reduzindo progressivamente os diferenciais de inflação e de taxas de juros entre o país e o resto do mundo, tornando cada vez mais importantes as expectativas de valorização dos ativos domésticos, enquanto forma de atração do capital forâneo.
Nessa visão, o "desaparecimento" do risco de desvalorização cambial aumentaria o grau de substituição entre ativos domésticos e ativos estrangeiros. Ou seja, a redução drástica do risco cambial determinaria uma maior integração entre o mercado financeiro nacional e o mercado internacional, melhorando, aos olhos dos investidores estrangeiros, a qualidade dos "nossos" ativos reprodutivos e dos títulos de dívida emitidos para possuí-los. Se assim fosse, dentro de um prazo razoável a ação dos novos investimentos e a melhoria da eficiência imposta pela concorrência externa levariam à recuperação sólida da balança comercial e à redução do déficit em transações correntes. O ministro Cavallo argumentava que o "currency board" era a condição essencial para o surgimento de um peso forte.
Esse regime iria requerer, como é reconhecido, a imobilização da política monetária, à medida que as condições de liquidez da economia deveriam ser determinadas pelas flutuações no volume de reservas cambiais. Essa escolha implica a aceitação do risco de ajustamentos recessivos e a deflação de preços quando mudam as condições de liquidez dos mercados financeiros externos ou quando ocorre uma flutuação negativa dos termos de intercâmbio.
Dada a fragilidade de seu sistema industrial e o baixo dinamismo de suas exportações -agravados pela imprudente liberalização comercial e financeira-, os ciclos de crescimento na Argentina foram relativamente curtos, invariavelmente acompanhados de elevação do déficit em transações correntes, aumento do endividamento externo (e de valorização de ativos). Desgraçadamente, foram seguidos de crises de confiança, saída de capitais e aumento na proporção dos contratos de dívida e dos depósitos bancários denominados em dólares. Esses movimentos comprimem a liquidez doméstica, fazem saltar as taxas de juros e lançam a economia na senda da recessão, da fragilidade financeira fiscal, do desemprego elevado. Os males da hiperinflação são substituídos pelos inconvenientes das violentas flutuações da taxa de crescimento do produto e do emprego.
Na verdade, até a desvalorização do real o "currency board" sobreviveu à custa da aventura cambial brasileira (ainda há quem se disponha a trocar o seu reino por um Cavallo). Depois de janeiro de 1999, a Argentina vem se debatendo entre as ilusões da "dolarização" e a realidade das políticas deflacionárias e de arrocho fiscal. Tudo para continuar merecendo a confiança dos mercados financeiros. Esses, ao que tudo indica, preferem atender aos sinais emitidos pelo Federal Reserve e fogem dos papéis argentinos, enquanto os possuidores de riqueza locais aumentam em suas carteiras a proporção dos ativos denominados em dólares.
Os que defendem o "currency board" tentam explicar que a desvalorização é uma loucura. Mas loucura maior foi ignorar que a adoção desses regimes cambiais e monetários costuma provocar irreversibilidades: o peso não é fraco nem forte. Simplesmente não existe mais, é apenas uma sombra do dólar.


Luiz Gonzaga Belluzzo, 57, é professor titular de Economia da Unicamp (Universidade de Campinas). Foi chefe da Secretaria Especial de Assuntos Econômicos do Ministério da Fazenda (governo Sarney) e secretário de Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo (governo Quércia).





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