São Paulo, domingo, 23 de outubro de 2005

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INTEGRAÇÃO

Divergências ameaçam a concretização da aliança Brasília/Buenos Aires/Caracas, idealizada por Hugo Chávez

Venezuela chega tarde para formar o "eixo do bem"

CLÓVIS ROSSI
COLUNISTA DA FOLHA

A entrada da Venezuela como membro pleno do Mercosul pode ser um pouco tardia.
Tarde, ao menos, para a utopia de construção de uma América do Sul unida e formando contraponto aos Estados Unidos.
Do ponto de vista do presidente Hugo Chávez, o "eixo do bem" nas Américas seria formado por Brasil, Argentina e Venezuela.
Chávez usa a expressão para ironizar a idéia de que esses países seriam o "eixo do mal", conforme a visão dos neoconservadores norte-americanos, manifestada assim que Luiz Inácio Lula da Silva e Néstor Kirchner se elegeram, ambos supostamente esquerdistas (Chávez já era o presidente).
Também na visão da esquerda nacionalista e anti-norte-americana, o eixo Brasília/Buenos Aires/Caracas era essencial, como chegou a formular Darc Costa, quando vice-presidente do BNDES, no início do governo Lula, e principal ideólogo do processo de integração sul-americano.
Dizia Darc à época: "O processo passa necessariamente por uma aliança Brasil-Argentina-Venezuela. Se houver tal aliança, o resto vem por gravidade".
O poder de atração do eixo parece de fato importante: juntos, os quatro países do Mercosul mais a Venezuela respondem por 70% da população, 76% da economia e 82% da produção de eletricidade da América do Sul.
O problema é que, entre a expectativa de Darc Costa, logo encampada por Chávez, e a concretização da entrada da Venezuela no bloco, surgiram percalços provavelmente mais importantes que o poder de atração. A saber:
1) O Brasil e a Argentina, óbvias usinas do processo de integração, cultivam mais conflitos que intenções comuns.
2) O governo Lula perdeu peso internacional, atolado em crise interna que, de alguma maneira, deslocou o foco para Chávez. Mas ele é polêmico demais para liderar um processo de integração desse porte, sem mencionar o fato de que a Venezuela é menos relevante que o Brasil para tal.
3) Os países do Pacto Andino (Peru, Equador, Colômbia) estão preferindo o ímã representado pelos Estados Unidos, com o qual negociam um acordo de livre comércio, ao "eixo do bem".
4) A Colômbia do presidente Álvaro Uribe representa, hoje, o porta-estandarte norte-americano na América do Sul.
Uribe tem notórias divergências com Chávez, que tendem a aumentar na medida em que são os dois presidentes de mais alta popularidade na região.
Mais ainda agora que a Corte Suprema colombiana deu sinal verde para o instituto da reeleição, o que, a princípio, assegura novo mandato para o presidente.
5) Chávez e Lula já tiveram dois bate-bocas sucessivos em encontros internacionais, ambos, aliás, da Comunidade Sul-Americana de Nações, que seria a forma institucional concreta do processo de integração sul-americano.
Nas duas vezes, a divergência se deu pela cobrança do venezuelano de resultados mais concretos nas cúpulas, enquanto o brasileiro lhe pedia paciência.
Em Cusco, no final de 2004, Lula criticou a ansiedade de Chávez, ao que este retrucou, duro: "Ansiosos estão os que ainda não comeram nada hoje, ansiosos estão os desempregados. Eu talvez seja apenas quem lhes dê voz".
Não é exatamente o ambiente mais adequado para a formação de um "eixo do bem". Por isso, a adesão da Venezuela, ao menos nas atuais condições de temperatura e pressão, funcionará mais como um oxigênio ao combalido Mercosul do que como embrião de um eixo que atraia, por gravidade, os demais países sul-americanos.


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