São Paulo, Domingo, 21 de Novembro de 1999
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

LUÍS NASSIF
A voz do morro

"Máscara Negra" foi composta para o Carnaval de 1967. Tinha 17 anos e ganhei de minha mãe um par de sapatos brilhante, acho até que envernizados, e fui incumbido pelas minhas primas de ciceronear a Marise no baile da Caldense.
A Marise era uma francesinha, sobrinha da madre priora do Colégio São Domingos. Nossa diversão consistia em falar mal do marechal Petain, que assinou a rendição da França ao Terceiro Reich e era o líder da facção política à qual pertencia sua família. Era a única coisa que tirava a Marise do sério. No restante, era bonita, encantadora, mas com uma energia massacrante. Passou o baile inteiro pulando sem parar ao som do "quanto riso / ó, quanta alegria". Terminei a noite aos cacos e com meu par de sapatos novos em pandarecos.
Foi o período de maior brilho da música de Zé Ketti, morto no fim-de-semana passado, aos 78 anos. Por aqueles anos, o samba tradicional andava meio por baixo, ao menos no sul de Minas.
A redescoberta do samba, pela minha geração, só teria início a partir de 1968, quando Paulinho da Viola e Elton Medeiros lançam o espetáculo "A Voz do Morro", justamente em cima de uma música de Zé Ketti.
Por aqueles anos, Zé Ketti virou nosso sambista padrão, mas até certo ponto. Em 1962 criou o conjunto "A Voz do Morro", juntando o iniciante Paulinho da Viola e o veterano Nelson Cavaquinho, além de Jair do Cavaco. Mas os ecos do morro ainda não conseguiam penetrar nas montanhas da Mantiqueira.
Foi quando, ainda em 1964, Nara Leão montou o show "Opinião", com Zé Ketti e João do Vale. Nem conto o que foi o impacto da música de ambos em todo o país. O repertório de Zé Ketti estourou de vez. "O morro não tem vez / e o que ele fez já foi demais", "acender as velas / já é procissão / quando não tem samba / tem desilusão". Digo que virou sambista padrão até certo ponto porque, muitas vezes, sua música chegava embalada em arranjos de subjazz que marcaram brevemente a MPB do "Fino da Bossa".
Antes mesmo do "Máscara Negra" lembro que à noite eu ia estudar no quarto de fora de casa, ligava o rádio rabo-quente e ficava procurando músicas. Quando entrava pelo dial aquela música com chiado da Rádio Nacional, parecia que estava entrando no cosmos e apreciando descobertas que pareciam inacessíveis. Ficava sonhando com aquele mundo imenso, fora de Poços, chamado Brasil, para além das montanhas da Mantiqueira, que parecia que eu nunca iria alcançar. A música que mais marcou aquele período para mim foi: "Se alguém perguntar por mim / diz que fui por aí / levando um violão debaixo do braço", do mesmo Zé Ketti.
Depois, Zé Ketti passou um longo período no ostracismo.
Reencontrei-o há uns dois anos em um show do "Supremo Musical", aqui em São Paulo. Por aqueles dias, o Banco do Brasil iria comemorar seus 100 anos de vida com um show de música brasileira em Brasília. Como eu andava escrevendo bastante sobre a importância de transformar a MPB no produto brasileiro de exportação, por seu valor econômico, cultural e diplomático, me convidaram para um breve discurso para a platéia -composta por diplomatas, parlamentares e membros do Executivo. Fui por amor à causa, porque abrir a cabeça daqueles diplomatas para valores populares nacionais é tarefa para oradores mais influentes, como Jesus Cristo para cima.
O show foi de gala, com a Orquestra de Tatuí e um conjunto de instrumentistas dos mais destacados, todos de fraque, tocando a mais sofisticada música brasileira do momento. Amigo, nem conto a hora em que Zé Ketti entrou no palco, para o encerramento. A platéia estava às escuras, mantendo um silêncio respeitoso. Apenas uma luz clara, nítida, indiscutível como o samba, acompanhava o sambista caminhando com dificuldades até a cadeira, colocada no centro do palco.
O cavaquinho deu o tom e Zé Ketti começou: "Eu sou o samba / a voz do morro sou eu mesmo, sim senhor / quero mostrar ao mundo que tenho valor / eu sou o rei do terreiro".
À sua frente não estavam mais diplomatas, senadores, deputados, ministros, altos funcionários públicos e jornalistas. Estavam brasileiros tomados pela emoção de compartilhar, juntos, aquele momento raro, imbatível de brasilidade, com o mundo oficial se curvando ao valor maior da raça: o samba.

E-mail: lnassif@uol.com.br


Texto Anterior: Lições Contemporâneas - Maria da Conceição Tavares: Aos que ainda têm voz: falem!
Próximo Texto: Aposentadoria: Fator do INSS já vigora em dezembro
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.