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LUÍS NASSIF
A voz do morro
"Máscara Negra" foi composta
para o Carnaval de 1967. Tinha
17 anos e ganhei de minha mãe
um par de sapatos brilhante,
acho até que envernizados, e fui
incumbido pelas minhas primas
de ciceronear a Marise no baile
da Caldense.
A Marise era uma francesinha,
sobrinha da madre priora do Colégio São Domingos. Nossa diversão consistia em falar mal do
marechal Petain, que assinou a
rendição da França ao Terceiro
Reich e era o líder da facção política à qual pertencia sua família.
Era a única coisa que tirava a
Marise do sério. No restante, era
bonita, encantadora, mas com
uma energia massacrante. Passou o baile inteiro pulando sem
parar ao som do "quanto riso / ó,
quanta alegria". Terminei a noite aos cacos e com meu par de sapatos novos em pandarecos.
Foi o período de maior brilho
da música de Zé Ketti, morto no
fim-de-semana passado, aos 78
anos. Por aqueles anos, o samba
tradicional andava meio por
baixo, ao menos no sul de Minas.
A redescoberta do samba, pela
minha geração, só teria início a
partir de 1968, quando Paulinho
da Viola e Elton Medeiros lançam o espetáculo "A Voz do
Morro", justamente em cima de
uma música de Zé Ketti.
Por aqueles anos, Zé Ketti virou nosso sambista padrão, mas
até certo ponto. Em 1962 criou o
conjunto "A Voz do Morro", juntando o iniciante Paulinho da
Viola e o veterano Nelson Cavaquinho, além de Jair do Cavaco.
Mas os ecos do morro ainda não
conseguiam penetrar nas montanhas da Mantiqueira.
Foi quando, ainda em 1964,
Nara Leão montou o show "Opinião", com Zé Ketti e João do Vale. Nem conto o que foi o impacto
da música de ambos em todo o
país. O repertório de Zé Ketti estourou de vez. "O morro não tem
vez / e o que ele fez já foi demais",
"acender as velas / já é procissão /
quando não tem samba / tem desilusão". Digo que virou sambista padrão até certo ponto porque, muitas vezes, sua música
chegava embalada em arranjos
de subjazz que marcaram brevemente a MPB do "Fino da Bossa".
Antes mesmo do "Máscara Negra" lembro que à noite eu ia estudar no quarto de fora de casa,
ligava o rádio rabo-quente e ficava procurando músicas. Quando
entrava pelo dial aquela música
com chiado da Rádio Nacional,
parecia que estava entrando no
cosmos e apreciando descobertas
que pareciam inacessíveis. Ficava sonhando com aquele mundo
imenso, fora de Poços, chamado
Brasil, para além das montanhas
da Mantiqueira, que parecia que
eu nunca iria alcançar. A música
que mais marcou aquele período
para mim foi: "Se alguém perguntar por mim / diz que fui por
aí / levando um violão debaixo
do braço", do mesmo Zé Ketti.
Depois, Zé Ketti passou um
longo período no ostracismo.
Reencontrei-o há uns dois anos
em um show do "Supremo Musical", aqui em São Paulo. Por
aqueles dias, o Banco do Brasil
iria comemorar seus 100 anos de
vida com um show de música
brasileira em Brasília. Como eu
andava escrevendo bastante sobre a importância de transformar a MPB no produto brasileiro de exportação, por seu valor
econômico, cultural e diplomático, me convidaram para um breve discurso para a platéia
-composta por diplomatas,
parlamentares e membros do
Executivo. Fui por amor à causa,
porque abrir a cabeça daqueles
diplomatas para valores populares nacionais é tarefa para oradores mais influentes, como Jesus
Cristo para cima.
O show foi de gala, com a Orquestra de Tatuí e um conjunto
de instrumentistas dos mais destacados, todos de fraque, tocando a mais sofisticada música
brasileira do momento. Amigo,
nem conto a hora em que Zé Ketti entrou no palco, para o encerramento. A platéia estava às escuras, mantendo um silêncio respeitoso. Apenas uma luz clara,
nítida, indiscutível como o samba, acompanhava o sambista caminhando com dificuldades até
a cadeira, colocada no centro do
palco.
O cavaquinho deu o tom e Zé
Ketti começou: "Eu sou o samba /
a voz do morro sou eu mesmo,
sim senhor / quero mostrar ao
mundo que tenho valor / eu sou o
rei do terreiro".
À sua frente não estavam mais
diplomatas, senadores, deputados, ministros, altos funcionários
públicos e jornalistas. Estavam
brasileiros tomados pela emoção
de compartilhar, juntos, aquele
momento raro, imbatível de brasilidade, com o mundo oficial se
curvando ao valor maior da raça: o samba.
E-mail: lnassif@uol.com.br
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