São Paulo, Domingo, 21 de Novembro de 1999
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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS
Aos que ainda têm voz: falem!

MARIA DA CONCEIÇÃO
TAVARES

  "Em nenhum momento da nossa história foi tão grande a distância entre o que somos e o que esperávamos ser." Celso Furtado

A esta altura dos acontecimentos, com o desemprego brutal, a violência e a corrupção corroendo a nossa sociedade, ainda temos de aturar os economistas do governo. A inflação repicou, a taxa de câmbio está sendo contida a duras penas e, depois dos fracassos das experiências asiáticas, russa e latino-americanas da década de 90, contar histórias da carochinha sobre a "auto-regulação" dos mercados financeiros globais é demais! Pregar a "plena conversibilidade" da nossa pobre moeda é um escárnio que as "autoridades" monetárias podiam nos poupar.
O argumento principal sobre as vantagens da "conversibilidade plena" é o de que ela terminará por produzir um aumento dos fluxos de capitais para o país, pois "o capital só entra aonde pode sair" (sic). A falácia é de dar dó, uma vez que é notório que não houve qualquer controle de saída de capital, desde 1992, nem sequer na crise cambial de julho de 1998 a fevereiro de 1999.
A "conversibilidade" já é tamanha que permitiu aos rentistas locais remeter livremente US$ 70 bilhões em menos de um ano. As remessas são feitas por meio de contas "legais", entre outras as famosas CC-5, que acobertam qualquer tipo de transação e negócio lícito ou ilícito, como, por exemplo, o do narcotráfico.
O Banco Central não adotou a "quarentena" chilena para entrada de capitais nem praticou qualquer tipo de fiscalização sobre operações bancárias duvidosas. Ou seja, em matéria de "liberalização" temos sido o máximo. Assim, essa nova conversa sobre "conversibilidade" parece apenas uma tentativa de acalmar os bancos internacionais ante a perda de reservas e o repique da inflação. Além, é claro, de ser uma manifestação inequívoca dos nossos "yes men" de que estão "repercutindo" a última reunião do BIS (na Suíça) e a desregulamentação da lei bancária norte-americana recentemente anunciada e se preparando para desnacionalizar o Banespa.
A conversibilidade sem controles cambiais não é apenas uma questão legal ou de boas intenções de aderir ao "Primeiro Mundo", pois depende antes de tudo da disponibilidade de divisas para bancá-la. Sem controle dos movimentos de capitais não conseguiremos financiar o balanço de pagamentos, e a perda de reservas se acentuará além dos limites tolerados pelo FMI. As projeções das contas externas, juntamente com a retomada da inflação, tem impactos óbvios sobre a taxa de juros, como as já verificadas: estancamento da queda da taxa básica e subida nos mercados futuros. Assim, o que tende a ocorrer, com ou sem declarações tranquilizadoras dos mandatários da República, é uma maior volatilidade do câmbio e dos juros que obrigará o BC a intervir no mercado de qualquer maneira.
Mesmo um aumento da entrada de capitais (prometido pelo ministro da Fazenda) não melhoraria a situação do balanço de pagamentos, já que propiciaria o correspondente aumento nas contas de juros e de remessas de lucros, a curto prazo. Essas, já no ano que vem, devem superar o volume de investimento direto estrangeiro, ainda que ele se mantivesse nos altíssimos volumes alcançados com as privatizações e as desnacionalizações. A manutenção dos níveis projetados de endividamento externo (e interno) com relativa estabilidade monetária é impraticável, com ou sem "conversibilidade" da moeda, com ou sem câmbio flutuante.
Os economistas de oposição (ao governo, não à nação) sabem que as contas financeiras externas levarão muito tempo até ser reequacionadas do ponto de vista patrimonial, mesmo em condições de moratória soberana. Por isso, propõem a centralização do câmbio e uma política ativa de exportações e de substituição de importações, para permitir que o superávit comercial seja capaz de financiar por si mesmo os fluxos de serviços mínimos do balanço de transações correntes.
Os economistas de oposição sabem que a primeira e mais importante "reforma estrutural" para enfrentar a crise diz respeito à renacionalização do dinheiro e do crédito, o oposto do que o governo central está propondo. E que isso requer um Banco Central realmente "independente", não do Tesouro Nacional, mas do capital especulativo internacional e da submissão (mesmo que "pragmática") às instruções do acordo FMI-BIS.
Os economistas "oficiais" devem parar de fazer crer aos incautos que um regime de câmbio flutuante é capaz de equilibrar em simultâneo as finanças públicas e o balanço de pagamentos. Que, com qualquer nível de demanda efetiva (mesmo em recessão), o BC possa fixar a meta de inflação autônoma, quando o próprio governo atropela a "meta" autorizando sucessivos choques de tarifas. Têm de parar de acreditar que o "Deus Mercado" é brasileiro e que os preços decisivos do dinheiro e das matérias-primas estratégicas obedecem a um sistema de equações simultâneas que determinam ou convergem para o equilíbrio. Devem parar de mentir e dizer que a inflação, o balanço de pagamentos e as contas públicas estão sob controle. Têm de parar de atribuir aos inativos, aos governos locais e até mesmo aos bandidos as culpas pela terrível situação em que o país se encontra. Têm de parar de buscar as supostas "divergências das oposições" como prova de que não há "alternativas viáveis".
Se querem continuar "pragmáticos" e "subservientes", parem ao menos de ofender nossa inteligência, de escarnecer da opinião pública e de corromper as consciências dos seus próprios quadros de elite.
Basta! Um pouco de seriedade, senhores. O espetáculo pode continuar, mas pelo menos com um pouco mais de compostura. Afinal, o Império não irá nos salvar e o circo não é suficiente sem o pão nosso de cada dia. Um minuto de silêncio pelos nossos mortos! Um minuto de recolhimento pelo passamento da República! Um minuto de atenção aos que ainda têm voz e consciência nacional e a seu manifesto em defesa do Brasil, da democracia e do trabalho.


Maria da Conceição Tavares, 69, economista, é professora emérita da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), professora associada da Universidade de Campinas (Unicamp) e ex-deputada federal (PT-RJ).
www.abordo.com.br/mctavares
e-mail: mctavares@cdsid.com.br


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