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OPINIÃO ECONÔMICA
Perguntas de Natal
JOÃO SAYAD
Às vésperas do Natal, sempre
me pergunto por que movimentos libertários acabam se
tornando autoritários, dogmáticos e contra a liberdade humana.
A mensagem de Cristo é de
amor e liberdade. Amor a si
mesmo, perdão por nossos atbos e pensamentos mais vis e
proibidos, amor ao próximo.
Em pouco tempo, transformou-se em obscurantismo,
dogmatismo, regras rígidas,
perseguição a hereges, judeus e
Inquisição.
A pobreza de são Francisco se
transformou em lindas igrejas
douradas. A Revolução Francesa, em jacobinismo e terrorismo. O comunismo, em stalinismo e "gulags".
Muitos fazem a mesma pergunta.
Dostoiévski respondeu com a
ficção do grande inquisidor que
prende e leva a julgamento o
próprio Cristo retornado à Terra. Ao julgá-lo, explica que as
pessoas têm medo da liberdade,
da responsabilidade e do vazio
que vem com ela. Precisamos
sempre de culpados e de punições.
La Boetie continua com a mesma linha de explicação no elogio
da servidão voluntária. Erich
Fromm escreve sobre o medo da
liberdade.
Não conseguimos viver sem tiranos que servem alternativamente como desculpa para nossa
falta de vontade ou bode expiatório para nossas insatisfações.
Na área secular e prosaica da
economia acontece a mesma coisa.
O economista liberal, neoliberal ou pós-liberal deveria ser um
amante da liberdade e da espontaneidade, se o adjetivo liberal
fosse para valer. Deveria ser um
sujeito simpático, barbudo, cabelo comprido, bolsa a tiracolo,
sandália e poncho.
Se alguém anunciasse que a
inflação vai ser maior no mês
que vem, ou que o dólar está
pressionado, deveria responder
tranquilo: "Fica calmo, bicho,
deixa rolar, não esquenta". Deixe as coisas acontecerem, se desenvolverem e chegarem a seu
equilíbrio natural e espontâneo.
O economista neoliberal, entretanto, é um sujeito de terno
escuro, cara raspada, gravata
amarela. Vive dando regras: aumente os juros, corte gastos, privatize, abra a economia! Só falta
determinar imperativamente:
sejam livres ou serão demitidos!
A esquerda sofre do mesmo
problema.
O programa mínimo publicado algumas semanas atrás por
partidos e organizações de esquerda preocupa-se em demasia
com as críticas da direita. Quer
mostrar que não é voluntarista,
que conhece as limitações do
mercado e a complexidade das
questões financeiras.
Apesar das boas intenções e de
muitos aspectos positivos, o programa fala em renegociação da
dívida interna.
Em primeiro lugar, ninguém
renegocia dinheiro que está no
próprio bolso. Só renegocia
quem tem empréstimo para receber. Dinheiro é, por definição,
aquilo que não pode nem precisa
ser renegociado.
A dívida interna brasileira é
igualzinha a dinheiro. É tão líquida quanto as moedas e notas
que temos nos bolsos. Tem prazo
curto. E representa a maior aplicação do dinheiro que todos nós
temos nos bancos.
Portanto, a renegociação da
dívida interna só pode ser feita
de uma forma -confiscando,
como o famigerado Plano Collor
confiscou. A proposta da esquerda, nesse caso, é igual à pior proposta da pior direita que já tivemos.
Em segundo lugar, por que
precisamos renegociar a dívida
interna? Por que os juros são altos? Os juros caíram pela metade
em seis meses, por decisão unilateral e correta do Banco Central.
O câmbio se desvalorizou ao
mesmo tempo, o que foi ótimo
para todos. Nada foi renegociado.
Será que mesmo com juros
menores de 19% ao ano, ou 9%
em termos reais, a despesa financeira do governo é muito alta? Se a economia crescer 5% ao
ano e os juros reais forem de 6%
ao ano, precisamos de superávit
primário de apenas 0,5% do
PIB. Se a economia crescer 6%,
não precisamos de nenhum superávit fiscal. É melhor crescer e
reduzir juros do que confiscar a
dívida.
Além disso, o primeiro governo de esquerda pode aumentar
a relação dívida/produto. O governo do PSDB aumentou de
10% para 50% do PIB em quatro
anos gastando tudo na compra
de dólares. É justo que um governo de esquerda aumente a
relação mais um pouquinho fazendo gastos em educação, saúde e infra-estrutura.
O raciocínio atrás dessas contas não é importante.
No Natal, o importante é refletir sobre esse destino fatal que
nos leva sempre a propostas
cruéis e pouco generosas. Sem fé,
nem esperança, nem caridade.
João Sayad, 53, economista, professor da
Faculdade de Economia e Administração
da USP e ex-ministro do Planejamento (governo José Sarney); é autor de "Que País é
Este?" (editora Revan); escreve às segundas-feiras nesta coluna.
E-mail: jsayad@ibm.net
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