São Paulo, Segunda-feira, 20 de Dezembro de 1999


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OPINIÃO ECONÔMICA
Perguntas de Natal

JOÃO SAYAD
Às vésperas do Natal, sempre me pergunto por que movimentos libertários acabam se tornando autoritários, dogmáticos e contra a liberdade humana.
A mensagem de Cristo é de amor e liberdade. Amor a si mesmo, perdão por nossos atbos e pensamentos mais vis e proibidos, amor ao próximo.
Em pouco tempo, transformou-se em obscurantismo, dogmatismo, regras rígidas, perseguição a hereges, judeus e Inquisição.
A pobreza de são Francisco se transformou em lindas igrejas douradas. A Revolução Francesa, em jacobinismo e terrorismo. O comunismo, em stalinismo e "gulags".
Muitos fazem a mesma pergunta.
Dostoiévski respondeu com a ficção do grande inquisidor que prende e leva a julgamento o próprio Cristo retornado à Terra. Ao julgá-lo, explica que as pessoas têm medo da liberdade, da responsabilidade e do vazio que vem com ela. Precisamos sempre de culpados e de punições.
La Boetie continua com a mesma linha de explicação no elogio da servidão voluntária. Erich Fromm escreve sobre o medo da liberdade.
Não conseguimos viver sem tiranos que servem alternativamente como desculpa para nossa falta de vontade ou bode expiatório para nossas insatisfações.
Na área secular e prosaica da economia acontece a mesma coisa.
O economista liberal, neoliberal ou pós-liberal deveria ser um amante da liberdade e da espontaneidade, se o adjetivo liberal fosse para valer. Deveria ser um sujeito simpático, barbudo, cabelo comprido, bolsa a tiracolo, sandália e poncho.
Se alguém anunciasse que a inflação vai ser maior no mês que vem, ou que o dólar está pressionado, deveria responder tranquilo: "Fica calmo, bicho, deixa rolar, não esquenta". Deixe as coisas acontecerem, se desenvolverem e chegarem a seu equilíbrio natural e espontâneo.
O economista neoliberal, entretanto, é um sujeito de terno escuro, cara raspada, gravata amarela. Vive dando regras: aumente os juros, corte gastos, privatize, abra a economia! Só falta determinar imperativamente: sejam livres ou serão demitidos!
A esquerda sofre do mesmo problema.
O programa mínimo publicado algumas semanas atrás por partidos e organizações de esquerda preocupa-se em demasia com as críticas da direita. Quer mostrar que não é voluntarista, que conhece as limitações do mercado e a complexidade das questões financeiras.
Apesar das boas intenções e de muitos aspectos positivos, o programa fala em renegociação da dívida interna.
Em primeiro lugar, ninguém renegocia dinheiro que está no próprio bolso. Só renegocia quem tem empréstimo para receber. Dinheiro é, por definição, aquilo que não pode nem precisa ser renegociado.
A dívida interna brasileira é igualzinha a dinheiro. É tão líquida quanto as moedas e notas que temos nos bolsos. Tem prazo curto. E representa a maior aplicação do dinheiro que todos nós temos nos bancos.
Portanto, a renegociação da dívida interna só pode ser feita de uma forma -confiscando, como o famigerado Plano Collor confiscou. A proposta da esquerda, nesse caso, é igual à pior proposta da pior direita que já tivemos.
Em segundo lugar, por que precisamos renegociar a dívida interna? Por que os juros são altos? Os juros caíram pela metade em seis meses, por decisão unilateral e correta do Banco Central. O câmbio se desvalorizou ao mesmo tempo, o que foi ótimo para todos. Nada foi renegociado.
Será que mesmo com juros menores de 19% ao ano, ou 9% em termos reais, a despesa financeira do governo é muito alta? Se a economia crescer 5% ao ano e os juros reais forem de 6% ao ano, precisamos de superávit primário de apenas 0,5% do PIB. Se a economia crescer 6%, não precisamos de nenhum superávit fiscal. É melhor crescer e reduzir juros do que confiscar a dívida.
Além disso, o primeiro governo de esquerda pode aumentar a relação dívida/produto. O governo do PSDB aumentou de 10% para 50% do PIB em quatro anos gastando tudo na compra de dólares. É justo que um governo de esquerda aumente a relação mais um pouquinho fazendo gastos em educação, saúde e infra-estrutura.
O raciocínio atrás dessas contas não é importante.
No Natal, o importante é refletir sobre esse destino fatal que nos leva sempre a propostas cruéis e pouco generosas. Sem fé, nem esperança, nem caridade.


João Sayad, 53, economista, professor da Faculdade de Economia e Administração da USP e ex-ministro do Planejamento (governo José Sarney); é autor de "Que País é Este?" (editora Revan); escreve às segundas-feiras nesta coluna.
E-mail: jsayad@ibm.net


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