São Paulo, domingo, 20 de maio de 2001

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LUÍS NASSIF

O sopro de Deus no Brasil

O Pelão , meu "insider" no campo musical, informa que Paulo Sérgio Santos está gravando um novo CD. Não sei se você já o ouviu. Se nunca o ouviu, considere-se um ouvinte musical de segunda classe. O Paulo Sérgio é um clarinetista da última geração de filhos de Radamés Gnatalli, tem formação erudita e, apesar de nem ter chegado nos 40, ousaria afirmar que se trata do maior clarinetista que o choro já conheceu.
Pelão se refere a ele como "sopro de Deus" e está certo. Aliás, a Santíssima Trindade do sopro brasileiro, hoje em dia, tem o flautista Altamiro Carrilho como Deus Pai, e, sentados à sua volta, o saxofonista Paulo Moura e o clarinetista Paulo Sérgio.
Apesar das madeiras dos violões, dos cavaquinhos e dos bandolins e dos couros das cuícas, dos surdos e dos pandeiros, o sopro tem papel fundamental na nossa música. O primeiro choro, "Flor Amorosa", foi composto por um flautista -Joaquim Antônio da Silva Callado. E foram sucessores seus, os também flautistas Anacleto de Medeiros e o genial Patápio Silva, além dos trombonistas Bonfiglio de Oliveira e Candinho, os que primeiro elevaram o choro à categoria de música instrumental de primeira.
Nas primeiras décadas do século, nove entre dez grandes instrumentistas brasileiros eram do sopro, formados na escola das retretas do interior, especialmente do nordeste. Nos anos 20 surgiria o maior instrumentista brasileiro da história, o flautista Pixinguinha, dando ao choro a feição moderna e internacional que o consagraria ao longo do século como a segunda escola mais importante de música instrumental.
Depois dele, o sopro continuou reinando, mas não de forma tão absoluta. A partir de João Pernambuco, gradativamente o violão vai se firmando como o instrumento brasileiro por excelência, como solo e como acompanhamento, secundado pelo cavaquinho, no acompanhamento, e pelo bandolim, no solo, graças a três gênios das cordas, Luperce Miranda, Garoto e Jacob do Bandolim, e, num plano mais popular, pelo violonista Dilermando Reis e pelo cavaquinho de Waldir Azevedo.
Mas o sopro continuou a ser o instrumento por excelência das formações orquestrais e mais eruditas, graças à influência das big bands americanas, das retretas brasileiras e das próprias orquestras de música erudita nacionais.
Pixinguinha passou da flauta para o saxofone quando os dentes o impediram de continuar no instrumento original. Nos anos 40 fez uma dupla histórica tocando sax, com Benedito Lacerda na flauta, a essa altura o substituindo como o maior flautista brasileiro. Esse predomínio de Lacerda foi até meados dos anos 50, quando Altamiro pega a coroa e a traz até nossos dias. Nesse período, em São Paulo, o grande mestre da flauta foi Carrasqueira, o "canário da Lapa", que deixou de herança muitos filhos musicais e um filho real e musical, o Toninho, que também é um craque.
Dos anos 40 em diante surgem muitas orquestras e muitos sopros de primeiríssima. Tornaram-se lendários no choro o saxofone de Ratinho, as clarinetas de K-Ximbinho e Luiz Americano, o grande Fon-Fon e sua Orquestra, as flautas de Benedito Lacerda e Dante Santoro, os trombones de Candinho, Raul e Zé da Velha, e mesmo o pistom, que revelou recentemente um craque, o Silvério. E surge o grande revolucionador do choro do final dos anos 40, o maestro e saxofonista Severino Araújo e sua Orquestra Tabajara.
Pessoalmente, conheci o K-Ximbinho no famoso festival do choro da TV Bandeirantes, no final dos anos 70. Era um potiguar baixinho, autor de alguns dos mais bonitos choros da história. Por aqueles tempos ainda estava brilhando com toda a intensidade a estrela do clarinetista Abel Ferreira e seu "Chorando Baixinho". Fui ouvi-lo numa casa do Morumbi, tocando um choro com a saída de clarineta colada no ouvido do pianista Arthur Moreira Lima, que chorava feito um bezerro desmamado.
Em um período em que as gravadoras não soltavam tantos discos e nossas discotecas estavam sendo formadas, a gente ficava especulando sobre quem seria melhor, se Abel, Luiz Americano ou se Altamiro. Armando Aflalo, dono de um amplíssimo conhecimento sobre o jazz, nem permitia tais divagações: o maior, o inigualável, era Altamiro, tendo acima dele apenas Deus e Pixinguinha.
E por conta dessas digressões, dessa nostalgia tão tipicamente brasileira, dessa celebração recorrente dos valores do passado, a gente tendia a considerar que os maiores estavam mortos, sepultados e consagrados, e do novo nada se deveria esperar, a não ser secundar os pioneiros.
Quando a gente lê essa urubuzada de hoje, achando que o país só anda para trás em qualquer caminho que se analise, quando patrulham qualquer visão otimista de futuro como sendo de polianas, não imagina o que foi o pessimismo dos anos 80. Jamais a música, o futebol, a cultura, e o que quer que fosse, conseguiria recuperar as glórias do passado.
No entanto, foram aparecendo um a um os sucessores da tradição, a música foi se renovando, alguns despontando como os maiores em seus instrumentos. Foi nessa leva que surgiu o "sopro de Deus" de Paulo Sérgio Santos.


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