São Paulo, domingo, 20 de maio de 2001

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

Demagogos e estrategistas do caos

MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES

"Demagogos e estrategistas do caos" foi de que o ministro Malan acusou as oposições em geral e o PT em particular, a propósito do esforço de implantar a CPI da corrupção. Essas designações parecem, porém, aplicar-se com mais propriedade às altas autoridades desta República, nas práticas abusivas de cooptar sua base de sustentação política e nos desdobramentos das estratégias de governo.
O "populismo cambial" do primeiro mandato presidencial e a política energética de todo o seu governo são exemplos acabados de demagogia e estratégias do caos. As crises cambial e energética são as restrições mais severas ao crescimento em qualquer país do mundo e, no entanto, o presidente e o seu ministro da Fazenda, "inamovível", não fizeram nada por evitá-las em tempo, apesar de choverem advertências. As justificações dos fracassos, atribuindo o primeiro a causas externas e o de agora a são Pedro e ao desconhecimento da situação, são exemplos acabados de demagogia.
A política cambial do primeiro governo FHC custou ao país a atual fragilidade financeira externa e interna. A submissão ao FMI e o ajuste fiscal permanente levaram ao subinvestimento e à degradação das políticas públicas. A política cambial foi "abençoada" pelo ministro da Fazenda e pelo mais alto dignitário da República, cujo único motivo para mantê-la era a reeleição, pela qual se dispôs a pagar qualquer preço. O preço que a sociedade e as finanças públicas pagariam foi desconsiderado.
O custo da "política" energética ainda está por ver-se. Desde as privatizações, o setor foi entregue a vários feudos e a lobbies com interesses contraditórios que não poderiam "coordenar-se pelo mercado", já que os custos e preços das várias fontes de energia e as margens de lucro das distribuidoras são divergentes. Ao governo central caberia reconhecer que o sistema elétrico era integrado e que não poderia ser privatizado a qualquer custo, assim como não poderá ser liberalizado o "mercado atacadista" de energia, acoplado a um mercado "spot". Esta é uma invenção pós-moderna, destinada à especulação com contratos, numa imitação caricata dos mercados futuros financeiros, que leva ao desastre em alguma das pontas do sistema (vide Califórnia).
Qual foi o planejamento energético feito pelo governo nos últimos anos? Nenhum. Os titulares da Energia foram ministros "mutantes" de acordo com as peripécias da privatização e com os humores da politicagem palaciana. Técnicos e simpatizantes do governo, alguns com vasta experiência no setor público e grandes consumidores de energia do setor privado, avisaram, em tempo, os altos escalões do governo de que a falta de investimento em geração e em transmissão de energia iria acarretar uma crise energética. O presidente fez-se de surdo e limitou-se a encomendar um novo modelo de privatização para Furnas.
É duro ouvir o presidente dizer que foi pego de surpresa, sem corar de vergonha ou indignação. Então o seu genro, diretor da ANP, não o avisou dos problemas pendentes na construção das termelétricas?! Os ministros de Minas e Energia, os presidentes de Furnas, de Itaipu, da Eletrobrás e da Aneel não o informaram?! O que fez o presidente quando o seu ministro de Minas e Energia dissolveu a comissão encarregada de estudar o racionamento no ano passado? Nada. Demitiu-o recentemente não por incompetência, mas por ter sido indicado por ACM, isto é, por brigas políticas nos intestinos de sua base de apoio. E o ministro da Fazenda não pensava nas consequências quando aprovava todos os cortes de investimentos nas grandes geradoras estatais, mesmo as que tinham elevados lucros?
"A surpresa que o governo confessa diante da gravidade da crise é fruto da soberba, somada à incompetência de seus agentes. Fernando Henrique e seus sábios têm o hábito de desqualificar quem como eles não pensa", disse nesta semana no "O Globo" o jornalista Márcio Moreira Alves. E disse bem. O governo não ouve mesmo ninguém, senão não se atreveria a nomear Pedro Parente para presidir a Câmara de Gestão da Crise Energética. Não deixa de ser mais um exemplo da prepotência dos nossos governantes colocar o encarregado por anos da "tesoura" e das "torneiras" do Orçamento, que não entende nada de energia, para tratar do racionamento. Esperemos que a pressão de várias instituições públicas e privadas, especialistas no assunto, não lhe permitam aplicar as "técnicas de corte" que lhe são habituais, nem concordem que as tarifas ao consumidor acompanhem a evolução do "mercado atacadista" de energia, senão o apagão vai sair muito mais caro ao país do que se possa imaginar.
Um governo tão atento ao que pensam os banqueiros internacionais poderia ao menos escutar algumas reações destes depois da crise da Califórnia. No "Financial Times" de 11 deste mês, diretores da Goldman Sachs reconhecem que "o mercado não funciona para situações de subinvestimento e se requer uma ação drástica do Estado na produção e distribuição de energia, para resolver a crise".
O problema não se resolve passando o ônus para os consumidores e castigando-os duplamente, com o racionamento e com a elevação de preços e, quem sabe mais tarde, culpando-os pelo fracasso. A questão que resta para a sociedade é saber como pressionar este governo, que desmantelou o Estado e desgoverna a nação, para que mude de rumo e não continue com as suas "estratégias do caos".


Maria da Conceição Tavares, 70, economista, é professora emérita da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), professora associada da Universidade de Campinas (Unicamp) e ex-deputada federal (PT-RJ).
Internet: www.abordo.com.br/mctavares

E-mail - mctavares@cdsid.com.br


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