|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
OPINIÃO ECONÔMICA
Do Brasil para o mundo
RUBENS RICUPERO
Não, não se trata do ingênuo
e grandiloquente "slogan" da
Rádio Jornal do Comércio de Pernambuco. Falo simplesmente do
esforço que fazemos nas Nações
Unidas para adaptar a Bolsa-Escola às condições africanas.
Sei que, por razões políticas ou
outras, discute-se muito no Brasil
sobre quem é o verdadeiro pai da
idéia, indício seguro de seu sucesso.
Lembram alguns que ela viu primeiro a luz em Campinas, havendo experiências interessantes em cidades como Belo Horizonte e Recife. Ninguém nega, contudo, ter sido
em Brasília que se passou à aplicação em escala significativa, até
atingir 25 mil famílias com um salário mínimo por mês. E que foi
Cristovam Buarque quem deu
realmente forma definitiva a uma
proposta incipiente, tornando-se,
mesmo fora do governo, seu grande
propagador, no país, na América
Latina e agora, por intermédio da
ONU, no vasto mundo.
Talvez seja até a primeira vez na
história que o Brasil produz, em
matéria social, uma proposta exequível, que funciona na prática e
possui qualidade de exportação.
Fomos, de fato, até os anos 70, um
país economicamente dinâmico,
mas no qual o aumento da riqueza
não foi capaz de desencadear mudança social correspondente, contradição nunca explicada satisfatoriamente por nossos cientistas sociais. Para que não se diga que estou sendo masoquista, é bom lembrar que um dos presidentes militares, e não dos mais brandos, chegou a dizer que o país ia bem, mas
o povo ia mal.
É curioso como nesse panorama
de quase invariável mediocridade
em termos de reforma social o pouco de bom que aconteceu quase
sempre proveio não do governo
central, mas da comunidade, prefeituras ou sociedade civil organizada em nível local. Bolsa-Escola,
orçamento participativo, experiências de Curitiba, saúde infantil no
Ceará, as tentativas abnegadas de
ajudar crianças de rua e, no plano
da ação direta para a reforma, o
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, é difícil se lembrar
de políticas ou iniciativas sociais
novas e imaginativas que tenham
partido do centro para a periferia.
Talvez isso seja inevitável em território descomunal, com disparidade
e diversidade regionais tão grandes
a ponto de tornar impossível desenhar políticas globais válidas para
tamanha heterogeneidade, mas fica aqui a indagação.
Seja como for, a Bolsa-Escola tem
a simplicidade do ovo de Colombo.
Se a família não manda os filhos à
escola por não poder dispensar o
pouco dinheiro que eles trazem da
rua ou do trabalho, por que não
fornecer-lhe recursos que compensem manter as crianças estudando?
É isso o que os economistas chamam de custo-oportunidade.
Intuindo que o princípio se aplicaria também à África, a Conferência das Nações Unidas sobre o
Comércio e o Desenvolvimento
(Unctad) e a Organização Internacional do Trabalho (OIT) constituem um grupo técnico para estudar a situação de 22 nações africanas sobre as quais existem estatísticas confiáveis. Chegamos à conclusão de que a Bolsa-Escola pode ser
adaptada a essas circunstâncias e
apresentamos à Conferência de
Bruxelas sobre os países menos
avançados um projeto-piloto a ser
testado em Moçambique, Senegal e
Tanzânia, a um custo de US$ 3 milhões em três anos. Para os 22 países do estudo, o custo de conservar
na escola os 6,4 milhões de crianças
que a abandonam a cada ano seria
mais que razoável: menos de US$
50 milhões anuais por país.
A diferença maior com o Brasil
ou o México, onde se adotou esquema similar, chamado Progresa, é
que os africanos são desesperadamente pobres e seus governos não
têm condições de financiar o projeto. O dinheiro poderia vir em parte
do perdão da dívida, mas, como esse último não está gerando muita
folga orçamentária, é provável que
a maior parte tenha de depender
da ajuda internacional. Para isso,
já o submetemos ao exame dos países do G-7, que se reunirão em Gênova em julho.
Nosso projeto atende pela sigla
Misa, correspondendo em inglês a
nome que significa Renda Mínima
para Frequência Escolar. Trata-se
efetivamente de uma das modalidades possíveis dos projetos de renda mínima, como o que o senador
Eduardo Suplicy (PT-SP) vem incansavelmente promovendo entre
nós. Hoje em dia, em todo o mundo, mesmo economistas conservadores reconhecem que a obrigação
de assegurar renda mínima a cada
um é o melhor método de combater a pobreza, desde que se tenha o
cuidado de evitar distorções e abusos.
No presente caso, a renda é condicionada à obrigação de escolaridade de todos os filhos. Alivia-se o
aperto de famílias sérias mas miseráveis, muitas das quais chefiadas
por mulheres abandonadas. Ao
mesmo tempo, elimina-se a evasão
escolar, reprime-se o trabalho infantil e ajuda-se a acabar com o
flagelo das crianças de rua e todas
as monstruosas violações de direitos humanos a que dá origem.
De tudo, porém, o mais importante é o acesso garantido à educação, a única maneira de romper a
armadilha da miséria que se perpetua de pai para filho. Nesse sentido,
como diria o Prêmio Nobel de economia Amartya Sen, não se trata
de um gasto sem retorno, mas sim
de um "investimento para criar capacidade". Duvido que haja muitos outros modos mais justificáveis
e úteis de empregar o dinheiro público e redistribuir a renda excessivamente concentrada.
O projeto tem o mérito adicional
de promover a instrução das meninas nos países em que elas são discriminadas, pois exige-se a absoluta igualdade de oportunidades para as mulheres. Em país como o
Brasil, que nunca sequer tentou
resgatar a dívida da escravidão, seria o caminho ideal para promover
menor disparidade entre as raças.
Deve ser motivo de orgulho para
todos nós que a inspiração tenha
vindo de um brasileiro, Cristovam
Buarque, e a viabilização técnica
haja contado com o aporte de Lena
Lavinas, ex-Ipea, hoje na OIT, Octávio Tourinho, do Ipea, e José B.
Figueiredo, da OIT. Para eles, aos
quais estendo meus agradecimentos, não haverá talvez recompensa
maior do que a satisfação interior
de buscar numa experiência brasileira a chave para ajudar a eliminar a pobreza do mundo.
Rubens Ricupero, 64, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento),
mas expressa seus pontos de vista em
caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco).
Texto Anterior: Brasil e EUA vivem o mesmo conflito Próximo Texto: LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS - Maria da Conceição Tavares: Demagogos e estrategistas do caos Índice
|