São Paulo, domingo, 10 de abril de 2005

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LUÍS NASSIF

Severino e o dragão "offshore"

A decisão do procurador-geral da República, Cláudio Fontelles, de pedir abertura de inquérito contra o presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, tem um significado que transcende o episódio em si.
Dia desses, conversava com um homem de mercado, que não tem propriamente uma avaliação positiva sobre Meirelles. Ele se dizia indignado com o processo, por uma razão muito simples: provavelmente todo diretor de Banco Central, que antes passou pelo mercado, recorreu em algum momento a esse expediente. Faz parte dos usos e costumes do mercado manter empresas "offshore" (em paraísos fiscais).
Prova disso é o caso Banco Araucária e as contas CC5 do Banestado. Em 1997, a partir das notícias levantadas no bojo da CPI dos Precatórios, já se sabia delas. Mesmo assim, mais US$ 20 bilhões ou US$ 30 bilhões transitaram pelas contas depois disso, atropelando normas fiscais e normas cambiais. Mas envolviam grupo tão amplo e influente de investidores que provavelmente os dados do CD da CPI do Banestado -em que constam todas as movimentações, a partir dos trabalhos de procuradores nova-iorquinos- permanecerão sigilosos até que não tenham mais efeito legal ou político.
Há tempos, procuradores investigavam esse esquema, sem lograr grandes avanços. Em parte, devido à obsessão por holofotes da mídia e falta de discernimento em divulgar episódios. Com isso, alimentavam os inimigos naquele que era o ponto central da impunidade: o reforço da blindagem técnico-política, em torno do discurso da "modernização", da estabilidade econômica, do temor reverencial pelo "mercado".
A partir do momento em que essas bandeiras, por falsas, perdem a legitimidade, a blindagem vai se esfarelando, episódio a episódio. A eleição do grande Severino Cavalcanti foi a primeira demonstração explícita.
Severino pode não ser sabido, mas é esperto. Diferentemente do cardeal-arcebispo do Rio de Janeiro, que, ao imitar preconceituosamente o sotaque nordestino e ao falar bobagens sobre Lula, mostrou que é sabido, mas não é esperto.
Com seu couro grosso do agreste, não se intimidou com as críticas dos "modernos" e conquistou seu espaço, como representante da afirmação política legítima do Congresso.
Na sua primeira decisão, o instinto político de Mestre Severino do Agreste captou na hora o sentimento popular e derrubou com um estalar de dedos o castelo de cartas que há mais de dez anos se sustentava desse modelo anti-social, antitrabalho, antiprodução, do aumento da carga tributária sobre o país -sustentado pelo discurso "técnico" dos que se defendiam da tributação montando empresas "offshore".
Em que pese sua independência histórica, Fontelles jamais ousaria abrir, ele próprio, um processo contra o presidente do BC, se ainda vigorasse o pretexto da desestabilização econômica -outra das blindagens desse modelo torto.
Independentemente dos resultados das investigações, aceitando a denúncia, o STF (Supremo Tribunal Federal) estará impondo definitivamente o primado das leis nacionais sobre esse mundo sem fronteiras da libertinagem cambial e fiscal dos anos 90, de pessoas que viviam defendendo o aumento da tributação, o corte nas despesas sociais, o aumento dos juros e, ao mesmo tempo, eram beneficiadas não apenas pelos juros altos mas pela possibilidade de fugir à tributação por meio da armação desses esquemas "offshore".
A possibilidade de um parlamentar empregar parentes merece manchetes esplendorosas. Não se defenda essa prática, mas a montagem de empresas "offshore" para fugir à tributação é de uma gravidade incomparavelmente maior, pelos valores envolvidos, pela possibilidade de crime fiscal, pelo fato de o dinheiro transitar pelos mesmos canais de lavagem de dinheiro do crime organizado. Agora, chega.
A abertura do inquérito será um ato de afirmação do Brasil formal sobre esse internacionalismo planilheiro, que, a partir dos pacotes econômicos, se colocou acima das leis, dos poderes e dos interesses nacionais.

E-mail -
Luisnassif@uol.com.br

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