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OPINIÃO ECONÔMICA
Meia política industrial?
JOÃO FURTADO
O tema da política industrial
reingressa timidamente no
debate econômico brasileiro após
uma longa ausência. O retorno é
auspicioso? A resposta é condicional.
As transformações econômicas
e tecnológicas vinculadas à globalização exigem uma nova abordagem para a política industrial,
que o Brasil foi incapaz de construir.
A persistência nas abordagens
antes bem-sucedidas -mas inadaptadas às novas realidades da
tecnologia- das firmas em globalização e do ambiente institucional serviu para fragilizar ainda mais os defensores da política
industrial. O discurso dominante
dos anos 80 e 90, mundo afora,
parecia apoiar as práticas não-intervencionistas.
A política econômica brasileira
do período recente baseou-se na
convicção de que os automatismos do mercado seriam capazes
de produzir, numa macroeconomia estável, uma elevação do patamar de competitividade.
O déficit criado pela valorização cambial a partir de 1994 desapareceria pelas próprias virtudes
da moeda forte: as importações
criariam uma pressão competitiva sobre a economia, e as compras externas de bens de capital
determinariam a modernização
da indústria. Haveria, então, um
novo patamar de competitividade.
Os efeitos competitivos vieram,
por vezes, notavelmente. Mas foram insuficientes para atingir os
objetivos almejados. As propostas
oficiais de política industrial ressurgem do reconhecimento dessa
insuficiência. Mas tal renascimento tem um duplo vício de origem: um prurido e um equívoco.
Tendo estigmatizado, apesar de
algumas vozes contrárias, qualquer intervenção, o governo tem
agora dificuldades em adequar
discurso e prática.
Flagrado na aparente contradição entre as imposições da realidade, o discurso público e as práticas do passado, o governo vê-se
compelido a admitir apenas uma
meia política. A política industrial torna-se, assim, no discurso,
uma política horizontal, supostamente neutra, que oferece a todos
os setores o mesmo conjunto de
fatores positivos, sem prioridades.
Mesmo uma política horizontal
está longe da neutralidade: a rodovia e a infovia são infra-estruturas genéricas e horizontais, mas
uma favorece mais um setor com
forte componente físico; a outra
favorece as atividades industriais
que dela dependem.
Um passo curto separa o prurido do equívoco da meia política.
Mas ele pode ser grave nas suas
consequências. No discurso oficioso, essa política envergonhada
(horizontal) é justificada pela experiência internacional. Os países
avançados praticariam políticas
exclusivamente horizontais, porque as verticais (setoriais e discriminatórias) seriam ineficazes e,
além disso, vedadas por organismos e acordos internacionais
(OMC). Mas a realidade é distinta.
Esses países praticam políticas
setoriais por vezes explícitas (Airbus), por vezes disfarçadas de desenvolvimento regional (Bombardier, no Canadá; chips nas periferias inglesas etc.) ou científico
e tecnológico, mas ambas dirigidas a setores específicos.
Os países avançados praticam
políticas setoriais, apesar de precisarem menos delas. É que, enquanto o Brasil se preocupava
ainda com a internalização de setores industriais (substituição de
importações, nos anos 70) ou se
enredava na crise da dívida (nos
anos 80), os países avançados e os
asiáticos poupados daquela crise
constituíram sistemas industriais
mais adaptados às novas condições, voltados para a inovação e
para a expansão internacional.
Na maior parte dos casos, eles
constituíram empresas sólidas e
dinâmicas, que se tornaram núcleos de indústrias competitivas,
capazes de enfrentar o novo ambiente internacional, localmente
e em outros mercados. Se as políticas setoriais parecem ausentes
nesses países, é também porque
elas já cumpriram a parte mais
importante do seu papel.
Que elas são hoje um vetor fundamental da competitividade dos
países de sucesso, isso está confirmado pelas estatísticas de comércio intrafirma. Tais estatísticas
mostram a elevada proporção
das importações brasileiras que
são efetuadas por filiais estrangeiras e se originam dos países (ou
regiões) de suas matrizes. Reconheça-se que a expansão das empresas ibéricas de telefonia está
servindo à expansão dos sistemas
industrial e financeiro europeus.
Dentro do governo, muitas cabeças e algumas vozes procuram,
por diferentes meios, libertar-se
do confinamento atual. Daí as
conversas com grandes atores globais para erigir um pilar eletrônico, o fomento aos bens de capital
para o petróleo, os fundos setoriais para fomentar o desenvolvimento tecnológico nas empresas.
São medidas importantes, mas
recatadas em termos de escolhas e
tópicas em termos de abrangência e de consistência. Os temores
oficiais com relação à política industrial justificam-se em ao menos um aspecto importante: conceber e operar uma política industrial tornou-se mais difícil. As
restrições internas e externas são
hoje mais severas, e os riscos de
fracasso são maiores.
Uma política industrial consistente exige objetivos claros e instrumentos múltiplos, operados
com empenho, envolvendo governo e atores privados. O desafio é
enorme, e a seletividade é a regra.
Há que se responder à questão sobre a distribuição temporal de benefícios e custos, um conflito que
as políticas horizontais podem
parcialmente evitar.
Se o Brasil está maduro para
uma política industrial, não se
deve imaginar que uma meia política terá consistência. Uma meia
política tem toda a chance de fracassar nos seus objetivos e de desmoralizar o instrumento.
João Furtado, 40, economista e doutor
em economia pela Universidade Paris
13, é professor no Departamento de Economia da Unesp.
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