São Paulo, segunda-feira, 08 de janeiro de 2001

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OPINIÃO ECONÔMICA
Meia política industrial?

JOÃO FURTADO

O tema da política industrial reingressa timidamente no debate econômico brasileiro após uma longa ausência. O retorno é auspicioso? A resposta é condicional.
As transformações econômicas e tecnológicas vinculadas à globalização exigem uma nova abordagem para a política industrial, que o Brasil foi incapaz de construir.
A persistência nas abordagens antes bem-sucedidas -mas inadaptadas às novas realidades da tecnologia- das firmas em globalização e do ambiente institucional serviu para fragilizar ainda mais os defensores da política industrial. O discurso dominante dos anos 80 e 90, mundo afora, parecia apoiar as práticas não-intervencionistas.
A política econômica brasileira do período recente baseou-se na convicção de que os automatismos do mercado seriam capazes de produzir, numa macroeconomia estável, uma elevação do patamar de competitividade.
O déficit criado pela valorização cambial a partir de 1994 desapareceria pelas próprias virtudes da moeda forte: as importações criariam uma pressão competitiva sobre a economia, e as compras externas de bens de capital determinariam a modernização da indústria. Haveria, então, um novo patamar de competitividade.
Os efeitos competitivos vieram, por vezes, notavelmente. Mas foram insuficientes para atingir os objetivos almejados. As propostas oficiais de política industrial ressurgem do reconhecimento dessa insuficiência. Mas tal renascimento tem um duplo vício de origem: um prurido e um equívoco.
Tendo estigmatizado, apesar de algumas vozes contrárias, qualquer intervenção, o governo tem agora dificuldades em adequar discurso e prática.
Flagrado na aparente contradição entre as imposições da realidade, o discurso público e as práticas do passado, o governo vê-se compelido a admitir apenas uma meia política. A política industrial torna-se, assim, no discurso, uma política horizontal, supostamente neutra, que oferece a todos os setores o mesmo conjunto de fatores positivos, sem prioridades. Mesmo uma política horizontal está longe da neutralidade: a rodovia e a infovia são infra-estruturas genéricas e horizontais, mas uma favorece mais um setor com forte componente físico; a outra favorece as atividades industriais que dela dependem.
Um passo curto separa o prurido do equívoco da meia política. Mas ele pode ser grave nas suas consequências. No discurso oficioso, essa política envergonhada (horizontal) é justificada pela experiência internacional. Os países avançados praticariam políticas exclusivamente horizontais, porque as verticais (setoriais e discriminatórias) seriam ineficazes e, além disso, vedadas por organismos e acordos internacionais (OMC). Mas a realidade é distinta.
Esses países praticam políticas setoriais por vezes explícitas (Airbus), por vezes disfarçadas de desenvolvimento regional (Bombardier, no Canadá; chips nas periferias inglesas etc.) ou científico e tecnológico, mas ambas dirigidas a setores específicos.
Os países avançados praticam políticas setoriais, apesar de precisarem menos delas. É que, enquanto o Brasil se preocupava ainda com a internalização de setores industriais (substituição de importações, nos anos 70) ou se enredava na crise da dívida (nos anos 80), os países avançados e os asiáticos poupados daquela crise constituíram sistemas industriais mais adaptados às novas condições, voltados para a inovação e para a expansão internacional.
Na maior parte dos casos, eles constituíram empresas sólidas e dinâmicas, que se tornaram núcleos de indústrias competitivas, capazes de enfrentar o novo ambiente internacional, localmente e em outros mercados. Se as políticas setoriais parecem ausentes nesses países, é também porque elas já cumpriram a parte mais importante do seu papel.
Que elas são hoje um vetor fundamental da competitividade dos países de sucesso, isso está confirmado pelas estatísticas de comércio intrafirma. Tais estatísticas mostram a elevada proporção das importações brasileiras que são efetuadas por filiais estrangeiras e se originam dos países (ou regiões) de suas matrizes. Reconheça-se que a expansão das empresas ibéricas de telefonia está servindo à expansão dos sistemas industrial e financeiro europeus.
Dentro do governo, muitas cabeças e algumas vozes procuram, por diferentes meios, libertar-se do confinamento atual. Daí as conversas com grandes atores globais para erigir um pilar eletrônico, o fomento aos bens de capital para o petróleo, os fundos setoriais para fomentar o desenvolvimento tecnológico nas empresas.
São medidas importantes, mas recatadas em termos de escolhas e tópicas em termos de abrangência e de consistência. Os temores oficiais com relação à política industrial justificam-se em ao menos um aspecto importante: conceber e operar uma política industrial tornou-se mais difícil. As restrições internas e externas são hoje mais severas, e os riscos de fracasso são maiores.
Uma política industrial consistente exige objetivos claros e instrumentos múltiplos, operados com empenho, envolvendo governo e atores privados. O desafio é enorme, e a seletividade é a regra. Há que se responder à questão sobre a distribuição temporal de benefícios e custos, um conflito que as políticas horizontais podem parcialmente evitar.
Se o Brasil está maduro para uma política industrial, não se deve imaginar que uma meia política terá consistência. Uma meia política tem toda a chance de fracassar nos seus objetivos e de desmoralizar o instrumento.


João Furtado, 40, economista e doutor em economia pela Universidade Paris 13, é professor no Departamento de Economia da Unesp.



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